sábado, 14 de março de 2015

MONSTRA a todo o vapor!


O certame arrancou dia 12 e, lá estava o Not a Film Critic, na sessão de abertura lotada da Sala Manoel de Oliveira no São Jorge, para fazer a sua cobertura completa e seríssima – not really. Houve mais do mesmo: “este ano vai ser mais melhor bom que o anterior”, momentos musicais de altíssima qualidade (fiquei fã da Mariana Abrunheiro e da Jacqueline Mercado) e algumas personalidades foram convidadas a ir ao palco, incluindo EGEACs, ICAs e realizadores estrangeiros, por entre muitos abraços e beijinhos e o Fernando Galrito (Director Artístico do Festival) falou, falou um pouco mais, falou bastante e por fim, lá se calou, deixando a sensação de que 10 dias são uma gota de água num oceano de cinema animado.

Entre as tantas, demasiadas novidades, destaca-se o separador giríssimo “Rayuela – Jogo da Macaca” criado por Nico Guedes e pela Miss Suzie, dotada de uma brutal energia positiva, que contagiou sala inteira com o som dos seus passinhos rápidos e alegria nervosa. Made in Portugal, pois com certeza. Seguiram-se propostas da América Latina como um “La Gran Carrera” (1935), “Quinoscopio” (1987), “Hasta los Huesos” (2001) e “Llluvia en los Ojos” (2014), pois que este ano, o festival de cinema de animação de Lisboa homenageia a América Latina. Foi uma verdadeira viagem no tempo e pelas diferentes técnicas de animação, que fizeram recordar alguns “Grandes” como o Quino, mais conhecido pela eterna chica-esperta Mafalda; rir de “caixão à cova” ou provocar chuva nos olhos… A retrospectiva dedicada ao Japão quase passaria despercebida, não estivessem uns certos Isao Takahata e Hayao Miyazaki na programação. O único outsider é Mizuho Nishikubo com o seu “Giovanni’s Island (2014), na Competição Oficial de longas-metragens. As propostas remanescentes destes autores são: “The Wind Rises” (2013), “Pom Poko” (1994), “Only Yesterday” (1991), “My Neighours the Yamadas” (1999) e “The Tale of the Princess Kaguya” (2014) e que me levam ao documentário “The Kingdom of Madness and Dream” (2013).

Exibido no Cinema Ideal, na minha estreia nesta sala íntima (é mais bonito do que chamar-lhe pequena), e com lotação quase cheia, tinha as expectativas sem dúvida, por demais, elevadas.



Chamar-lhe um "mau" documentário é ser injusta e desligada da realidade. Ser fangirl de Miyazaki e Takahata é ter quase, por definição, expectativas elevadas. Ora, não podia confundi-los, às pessoas, com a obra fantástica e, por conseguinte, com o documentário da cineasta Mami Sunada. Ela teve um acesso inédito e quase total ao estúdio Ghibli durante um ano e teve oportunidade de falar entre outros com Miyazaki e o eterno produtor Toshio Suzuki. Talvez por isso a sua abordagem minimalista e (aparentemente) pouco inquisitiva se assemelhe a uma oportunidade desperdiçada. Pensem numa estrela de cinema, ou numa banda musical, um individuo ou grupo de pessoas que vos inspirem respeito e vos levem a gastar tempo e dinheiro nos seus projectos. Se tivessem hipótese de estar com elas, mesmo que por breves momentos, não sentiriam a necessidade de lhes fazer um milhão de perguntas ou sobre-analisar quaisquer acções para entender o que está por trás do seu génio? O estilo de Sunada não podia estar mais distante desta linha de pensamento. Talvez, por acordo prévio, ela tenha sido forçada a conter-se, a deixar-se observar sem participar, se considerarmos que a mera observação não provoca alterações significativas na acção em que se deixou inserir. Afinal, ela acompanhou o processo de finalização de “The Wind Rises”, com todas as decisões prementes que isso implicou e, em menor escala, no “The Tale of The Princess Kaguya” pois que Takahata é um eremita que apenas vê a luz do dia após a conclusão do projecto que tem em mãos. Miyazaki é retratado como o avô simpático que já imaginávamos que fosse, mas muito mais pragmático e humano. É obsessivo-compulsivo quanto ao modo de fazer filmes – todos os pormenores cuidadosamente planeados e cronometrados, incluindo os momentos de descontracção – e, uma pessoa que inspira respeito e medo nos seus colaboradores. Eles temem que por associação, a sua energia lhes escape do corpo pois que Miyazaki reconhece o talento mas não sabe parar e pode exigir demais de quem o rodeia. Além disso como pode um homem com uma imaginação sem limites viver uma vida tão agarrada às rotinas? Estes são alguns dos aspectos menos românticos de Miyazaki e, talvez mais impressionante a sua confissão de que o estúdio Ghibli tem os dias contados e com ele os seus funcionários. Poderemos encontrar no facto de conceder um acesso tão intimista a Sunada, um sinal dissonância cognitiva? Gihblie foi o desejo egoísta de quatro homens, incluindo o Miyazaki, Takahata, Suzuki e ainda Yasuyoshi Tokuma de criar uma empresa mais focada na arte e nas pessoas que no lucro com os resultados que ora se vêem. Há muito pouco da magia das longas-metragens criadas pelo estúdio no documentário. As vendas de merchandise caíram, o processo é demasiado moroso e cansativo para todos os envolvidos e não compensa em termos monetários… E as estórias não são meras ideias fantasistas de um homem que diz criar storyboards, não estórias. Se elas existem, estão no subconsciente de Miyazaki. As memórias de infância e outros acontecimentos da já sua longa vida são vertidas em imagens que a sua equipa interpreta e reorganiza com o seu apoio. O animador fala por exemplo de recordações dolorosas como o momento em que ele e o irmão escaparam a um grande incêndio que assolava a cidade após os raides aéreos durante a guerra e de uma mãe e filha que acabaram por se separar da família dele, durante a fuga. Que seria feito delas? Em “The Wind Rises”, vemos o herói Jiro a parar para acudir a uma mulher e menina. Também o pai do animador era um vendedor de peças de avião. Ele passa horas a animar aviões que o fascinam a ele como ao personagem. Mas é rápido nas decisões. Já o mesmo não pode ser dito de Takahata que poderá ficar duas horas em meditação para seleccionar um poster de um “The Tale of the Princess Kaguya” e, como todos à sua volta sabem, é péssimo a cumprir prazos. Ele que, segundo Miyazaki, quer evitar concluir os seus filmes. Como se o primeiro tivesse ainda bastantes animações a dar ao mundo e temesse a reforma a que Miyazaki já se agarrou. Suzuki surge então como o verdadeiro herói desconhecido, cola e elo de ligação entre artistas, paciente e persistente mas já sem a energia de outros tempos. É o único no qual se reconhece vida além do estúdio ainda que este consuma a maioria das suas horas.
Sunada foca o posto de trabalho de Miyazaki, o terraço onde gosta de descontrair e cogitar sobre a vida, a pachorrenta gata que ocupa o estúdio como se fosse ela a sua legitima proprietária e os trabalhadores personagens secundárias, que deixa mais do que uma leve desconfiança de que foi a base da inspiração para uma personagem de “The Cat Returns” (2002) e, enfim, o quotidiano. Há ainda momentos fantásticos como a reunião de equipa em que Anno Hideaki é considerado para fazer o trabalho de voz por trás da voz de Jiro ou quando Miyazaki se comove com o próprio filme acabado de concluir. Sunada teve dificuldade em concluir o documentário. Se calhar captou demasiado material ou também ela estaria indecisa quanto à nota final que queria deixar, incerto que era o futuro do estúdio Ghibli. Por isso, existe uma sucessão de finais falsos, uns mais poéticos que outros e que demonstram uma manifesta diferença de tom perdendo, o trabalho a espaços, a aura de autenticidade. A reflexão final é de algum desalento. Se estes são os momentos que conseguimos inferir através do que os “personagens” dizem e deixam antever de modo explícito, resta-nos imaginar que significações podíamos retirar se Sunada tem sido mais assertiva. Três estrelas.

Realização: Mami Sunada

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