Por entre os devaneios retro de um “Turbo Kid”, a loucura sem limites de “Yakuza Apocalipse” ou os nervos contidos de “The Invitation” seria fácil “The Shrew’s Nest” (que teve uma presença discreta no Cinefiesta de 2014), passar despercebido na 9.ª Edição do MOTELx. Seria… mas não foi.
“The Shrew’s Nest” foca a estória de Montse (Macarena Gómez) e a irmã acabada de completar 18 anos (Nadia de Santiago). Com a morte prematura da mãe e o abandono do pai (Luís Tosar), Montse chama a si o papel de progenitora que assume com todo o zelo e autoridade. Acossada pelo temor do desconhecido Montse é uma reclusa na sua própria casa, fazendo trabalhos de modista e tendo por ligação mais imediata ao exterior a irmã que trabalha na loja de ambas. Na casa que governa com mão de ferro, Montse recebe ainda a Dona Puri (Gracia Olayo) cliente e boa vizinha de confiança há muitos anos conquistada, pois que qualquer pessoa que introduza no seu lar é uma pessoa a mais. Viciada em morfina, nos seus receios e fervor religioso que constituem a maior fonte de emoções numa vida sem acontecimentos, Montse não tem qualquer desejo de alterar a sua situação. Enquanto o exterior não lhe entrar pela casa adentro e conseguir manter a irmã com rédea curta estará no pleno da sua existência limitada.
No entanto, a irmã que até ali manifestara meros laivos de rebeldia inicia a demonstrar um preocupante desejo de independência e a questionar a autoridade de Montse. Entretanto, o vizinho do andar de cima Carlos (Hugo Silva) cai das escadas do prédio quedando-se perto da sua porta. Pela primeira vez em muitos anos Montse é confrontada com uma situação em que se sente forçada a sair da sua zona de conforto e toma a decisão de esconder Carlos que partiu uma perna no acidente, qual Annie Wilkes (“Misery” 1990). Receber um estranho na sua casa, ademais o sedutor Carlos revela-se avassalador para Montse. Um mundo de oportunidades se abre para ela. De súbito, tentar sair de casa parece menos assustador e a ideia da irmã a trocar por outra realidade não se assume como o pior que poderia suceder. A destruição destas ilusões românticas prematuras irá lançar Montse numa espiral de insanidade com contornos trágicos. Montse é uma metáfora da sociedade do ditador Franco. Desde o temor profundo que lhe é incutido através da figura do pai déspota e da religião obsessiva como guia orientador e resposta para quaisquer eventos que fujam aos padrões do que se entende por uma boa conduta, até à “claridade” de que um homem constitui a solução para todos os problemas.
Macarena Gómez é uma estrela como Montse. É esta personagem que confere uma força vital ao argumento. Ela é a Espanha franquista dominada pelo medo. Ela tem medo, incute medo e sobrevive através do medo. Ela teme o desconhecido e exerce o temor no castigo da irmã, no fundo, a única pessoa na qual pode descarregar toda a sua frustração e, em simultâneo, aquela que lhe permite manter alguma sanidade na sua cela voluntária. Quando surge um desafio ao seu poder, ela faz o que qualquer animal perseguido faz: ela luta com todas as suas forças para sobreviver. Só que o que ela entende como provocação, não é mais do que as vivências que qualquer indivíduo tem de ultrapassar para se melhorar enquanto ser humano.
A acção de “The Shrew’s Nest” ocorre quase na íntegra no apartamento das irmãs mas não está confinado ao espaço. Antes ajuda a criar um sentimento de empatia para com Montse e a sua agorafobia e, por outro, criar uma afinidade com a irmã de Montse que anseia ir além das paredes que a sufocam. O argumento foi escrito com uma sensibilidade que permite observar as personagens nas suas áreas cinzentas. Ninguém é por completo um monstro ou uma vítima. O sentimento de desconforto, a loucura que grassa nas paredes aguardando por um rastilho para explodir é palpável. A escalada e a recompensa demoram mas são rápidas e furiosas. Não é mesmo este o tipo de emoções que se esperam de um festival de cinema de terror?
PS 1: Texto publicado originalmente aqui.