segunda-feira, 20 de julho de 2020

Suores Frios – "A barata diz que tem (Pesadelo em El Street 4)" - por Miguel Ferreira


Curiosidade. É a curiosidade que melhor descreve e ensopa o meu cinema de cachopo. A magia do proibido sempre me inquietou. Tinha de saber, alguém tinha de me contar. E se por um lado os meus pais eram incansáveis timoneiros neste meu deslumbre, por outro tinham regras e linhas muito bem definidas. Um filme para maiores de 16, era um filme para maiores de 16. Mostra lá o BI. Pois. Nada feito. Foi assim que no alto dos meus dez anos sabia tudo o que tinha acontecido em “O Silêncio dos Inocentes”.  De trás para a frente, porque tinha ouvido a história, feito perguntas, uma e outra vez. Tive um filme, ali naquela narração paternal cheia de emoção, terror, energia, que só materializei anos mais tarde. Eram obras imaginadas, em constante crescimento, aguardando o dia em que, juntamente com outras borbulhas, passariam a ser uma realidade. Porém, estes embargos cinéfilos, eram por vezes contornados: em casa de compinchas as leis eram outras, as cassetes também. Um dos meus grandes amigos era doidinho por terror e não tinha as minhas restrições em relação à faixa etária: predador, omen, mosca um, mosca dois, ia tudo a eito. E foi numa dessas tardes, no início dos anos 90, que em casa dele passava o “Pesadelo em Elm Street 4”.


A cena. A cena é muito simples. Uma rapariga está a treinar. Deitada num daqueles bancos de ginásio, empurrando a barra para cima, segurando para baixo. Unhas pintadas, cabelo com volume de aulas de ginástica em VHS. A música flui, até que duas mãos prendem o movimento. Uma figura de chapéu, cara queimada e camisola às riscas empurra a barra para baixo até os braços da rapariga estalarem e rasgarem na zona dos cotovelos. Os antebraços ficam bambos e na ferida aberta começa a crescer algo. Na carne antiga surge uma nova. Enquanto se levanta e foge da criatura a nossa heroína vê os seus apêndices trocados por patas de inseto, enormes, desproporcionais. No desespero e na fuga o quarto forrado a jornais dá lugar a um estranho túnel, luzes mais amarelas, mais pestilentas. Entretanto escorrega e cai de cara numa poça amarela, numa cola que a agarra. Ela grita e tenta descolar o rosto, mas ao puxar a cabeça a pele fica. Sai como se fosse uma máscara. A transformação estava quase completa: tronco e cabeça de barata, pernas humanas. Um conjunto indefinido e disforme, preso num movimento mudo, num pedido de ajuda. Mudamos de perspetiva e vemos que ela se encontra numa pequena caixa, nas mãos daquele sinistro vilão, que a esmigalha com escárnio, libertando mais uma catrefada de viscosidades. É isto, e eu ali, de pé, ao lado do sofá, imóvel. Impressionado, arrepiado. A perceber que tinha acabado de ver algo, que não só nunca tinha visto, como nunca mais me ia largar.


Sonhos. Não deixa de ser irónico, um real pesadelo a amedrontar-me os carneirinhos. Um terror de outrem convertido num medo próprio. Ao longo dos anos fui fazendo os meus sustos e regando o que é hoje um dos meus géneros favoritos. Porém, só muito recentemente é que voltei a Elm Street. O original de Wes Craven (1984) apresentava-nos Freddy Krueger, uma figura deformada, vingativa e sádica, que vinha atrás de nós durante os sonhos. Deu origem a oito sequelas, incluindo um crossover com a saga “Sexta-Feira 13” e um remake (aborrecidíssimo) para as novas gerações. Vi os cinco primeiros, “O Novo Pesadelo de Freddy Krueger” e o “Never Sleep Again: The Elm Street Legacy”, excelente documentário que varre duma ponta a outra a mitologia. Chegar a “Pesadelo em Elm Street 4”, do meu querido Renny Harlin, e rever, agora com enquadramento, esta cena é como terminar um quadro. Uma última pincelada, a última linha antes de fechar e encostar o livro no colo. E apesar de achar tudo um pouco mais colorido, com deliciosas e míticas deixas de Krueger, o terror continua lá. O terror que hoje assumo como fundação: a claustrofobia, o crescendo, a construção, a carne. Os efeitos práticos, a marcar passo e a ditar todo um imaginário. Apesar de hoje o meu amigo já não gostar tanto do género. Apesar de a criatividade da morte se ter encostado a sagas como o “O Último Destino” ou “Saw”. Apesar, apesar, apesar, há algo que permanece. Nesta dicotomia do sonho e do real, da ficção e da vida. Debbie, a tal rapariga que acaba transformada numa barata, diz logo no início da cena a Freddy que não acredita nele. Às vezes precisamos de ser relembrados, que eles, por outro lado acreditam em nós, e que o nosso cinema está sempre lá, à nossa espera. Obrigado à Rita por este convite e por este regresso.

Miguel Ferreira
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