domingo, 8 de janeiro de 2012

"Re-cycle" (Gwai Wik, 2006)

O cérebro é uma coisa fascinante. Não nos deixa esquecer as memórias que mais teimamos em abandonar e é implacável com aquelas que nos são preciosas. Ting-yin (Sinjie Lee) é uma escritora que está finalmente pronta a abandonar o passado. Um romance falhado deu-lhe material para quatro livros de grande sucesso mas enquanto a sua vida profissional floresce, a sentimental é inexistente. Ting-yin decide fazer o corte do modo mais radical: escrever um livro sobre o sobrenatural. Fiel ao seu método que melhor conhece, o de vivenciar aquilo que escreve, Ting-yin anseia por ter uma experiência sobrenatural.
O antigo amor, aquele que lhe deu inspiração para uma vida inteira de romances trágicos de sucesso ressurge disposto a comprometer-se. Entretanto, também o seu manager Lawrence (Lawrence Chow), anuncia o título do novo livro de Ting-yi sem esta ter ainda escrito uma linha. Perturbada com o regresso do que lhe provocou tanta dor e a pressão de escrever um novo livro, a tarefa é-lhe mais difícil do que nunca. Escreve, apaga, reescreve, desiste e deita fora o papel. Este ritual repete-se até que as suas linhas principiam a transpor para a realidade. Os aparelhos começam a tomar vida própria e as torneiras abrem-se sozinhas. Ting-yi sente-se assombrada. É real ou está tudo na sua cabeça? Não era afinal o que Ting-yin queria? Apostada em compreender o que se está a passar, Ting-yin entra numa dimensão paralela, onde os seus medos se tornam realidade. Dificilmente se encontrarão dois capítulos mais distintos numa película. Os primeiros quarenta minutos são típicos dos irmãos Pang, onde se podem vislumbrar truques ou variações das técnicas presentes na série de filmes “The Eye” (2002). A segunda metade do filme também é típica dos Pang com a ligeira diferença de que a dupla aposta tudo nos aspectos visuais em detrimento do desenvolvimento da narrativa. E que festim para a vista: temos um parque de diversões made in hell, um batalhão de zombies, uma gruta de fetos abortados… Sim, eles foram lá. E mais não digo para não furtar a surpresa à experiência visual. “Re-cycle” apresenta uma confluência de fontes de inspiração que não são assim tão difíceis de encontrar. Temos desde a entrada de Tyng-yi na nova realidade paralela qual “Alice no País das Maravilhas” do Lewis Carrol, passando pelo imaginário de Tarsem Singh [“The Cell”(2000) e “The Fall” (2006)] e pela obra extraordinária do Terry Gilliam até ao universo dos jogos de vídeo e computador com “Sillent Hill” (2006). A homenagem, não se sabe se intencional ou não, é inócua e está ao nível dos exemplos anteriormente citados. É onde o cinema e a arte se encontram de mãos dadas, discorrendo livre, sem interferências explícitas do estúdio. “Re-cycle” é sobre a perda e a mudança, sobre como podemos passar a vida real para o papel e lhe podemos dar um final feliz. “Re-cycle” é também a lembrança de tudo o que descartámos ou deixámos para trás: sonhos, pensamentos, desejos e acções, seguindo um caminho diferente na estrada sinuosa da vida. Mas toda esta reflexão é abandonada para dar lugar ao espectáculo visual.
Os temas são abordados superficialmente, por um ancião e uma pequenina que acabam por se tornar os guardiões de Ting-yi na dimensão. Mas parece não existir um esforço consciente para dar continuidade às temáticas. Nem Ting-yin está interessada em buscar um significado para a experiência simultaneamente fantástica e assombrosa que está a viver, nem retomadas as questões levantadas logo de início pelos novos personagens. Ting-yin sobressai como uma mulher vulnerável que só quer fugir do pesadelo onde se enfiou por desejo próprio. Explorar a sua própria psique e encontrar a resposta tão óbvia para a sua presença ali é a sua última preocupação. A recém-descoberta vulnerabilidade de Ting-yin contrasta com a personagem quase glacial a que fomos apresentados pelos Pang. Tivesse Sinjie Lee um pouco de argumento e seriamos brindados com uma representação digna do seu talento. Sinjie Lee é na verdade Angelica Lee actriz preferida dos Pang desde que contracenou em “The Eye” (2001) e comprova mais uma vez por que é a musa perfeita para as obras focadas no sobrenatural da dupla de realizadores. E o seu próximo esforço também está quase ai, “Sleepwalker” (2011), no qual é dirigida pelo marido, nada mais, nada menos, que Oxide Pang Chun. A ela junta-se também Lawrence Chow, outro habitué nos filmes dos cineastas. Um passeio no parque para os Pang. Estes irmãos não são consensuais e têm obras bastante questionáveis, mas depois de obras com a mestria de “Re-cycle” uma pessoa começa a questionar-se se os problemas de concretização estão no talento da realização ou nas pressões dos estúdios. Outro ponto controverso será a forte mensagem pró-vida do filme que certamente provocará uns risos nervosos nos defensores mais fervorosos do aborto. Visualmente perfeito e a gritar por uns óculos 3D, “Re-cycle” é uma película imperfeita que pede mais do que uma visualização até que o olhar humano consiga apurar todos os pormenores magníficos da obra desta dupla de Hong Kong. Três estrelas.

Realização: Oxide Pang Chun e Danny Pang
Argumento: Cub Chin, Sam Lung, Oxide Pang Chun, Danny Pang e Thomas Pang
Sinje Lee como Ting-yin
Ekin cheng como Jeong Man
Lawrence Chow como Manager de Ting-yin
Siu Ming-Lau como Velho
Yaqi Zheng como Ting-yu
Próximo Filme: "Ju-on: The Grudge" (Ju-on, 2003)

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