domingo, 22 de janeiro de 2012

"Ring" (Ringu, 1998)

Atmosfera é com toda a certeza, uma das palavras mais utilizadas pelos críticos de cinema. Serve para descrever uma indefinição, neste caso, algo que se sente. Lembro-me de o crítico de cinema Scott Weinberg (Twitch Film, Fear.net, etc.) discorrer numa rede social, sobre o facto da palavra atmosfera se ter entranhado de tal modo no léxico dos críticos que qualquer acontecimento serve para a utilizar. Certamente, já viram os famosos one-liners de publicações mais ou menos conhecidas nas capas dos posters e DVD’s que apregoam: “Uma Atmosfera Pesada” ou uma “Atmosfera Atemorizante!” Como se nunca tivéssemos lido aquilo antes ou constituísse um argumento para se visionar a obra em causa. Conheço bem a questão, contribuo para a banalização da palavra, para a propagação da ideia… Textos anteriores são a prova disso. No entanto, por vezes, surgem filmes nos quais as palavras mais banais são as mais correctas. Nem sei como começar por vos explicar como “Ring” (1998) (sobre)vive tanto da atmosfera…
Desde o início dos créditos iniciais, até ao momento em que surgem duas adolescentes na tela, que algo nos diz, o instinto se desejarem, que algo não está bem. O sentimento de opressão não é reduzido pelo facto de vermos duas jovens a rir e a partilhar mexericos. Uma delas principia a contar um rumor, daqueles que se ouvem na escola, contados por terceiros, que também não sabem quem contou a história inicial. Supostamente existe uma cassete VHS, cujo conteúdo mata quem a vê, dentro de 7 dias. Por entre sorrisos, a contadora de histórias admite que já a viu. Elas trocam um olhar perscrutador. O telefone toca.
Reiko Asakawa (Nanako) entra em acção. Ela é uma repórter. A curiosidade está-lhe no sangue e este ferve quando descobre que a sobrinha Tomoko (Yuko Takeuchi), que faleceu recentemente em circunstâncias suspeitas terá visto o vídeo. Ela entra no mundo dos jovens, onde os mitos urbanos e as superstições são um lugar-comum.  Em paralelo com a sexualidade, são explorados os mistérios da vida e da morte e predomina uma vontade de impressionar os amigos com histórias de arrojo. E nessa senda de ser o “puto mais fixe” do grupo adoptam atitudes perigosas, irresponsáveis e irreflectidas. Desafiam-se a fazer o jogo do copo (tábua ouija), incitam-se a olhar ao espelho e invocar espíritos, desafiam-se a visualizar cassetes amaldiçoadas… Reiko, não quer ficar de fora, o desejo de saber é mais forte que ela e a investigação leva-a a um hotel na província onde encontra a dita cassete. O que vê é desconcertante. Depois o telefone toca e a realização de que a maldição é verdadeira. O medo instala-se e recruta o ex-marido Ryuji (Hiroyuki Sanada) para a ajudar a quebrar a maldição. Quando Reiko surge pela primeira vez no ecrã transmite uma aura de despreocupação e desprendimento face ao filho Yoshi (Rikiya Otaka). Assim, que se apercebe da sua iminente mortalidade e, por que os pais não conseguem controlar o que os filhos fazem, Yoshi vê a cassete, a fachada cai. Agora, desvendar o mistério deixa de ser imprescindível, é vital. Seguimos Reiko e Ryuji numa investigação cujas conclusões não são necessariamente as mais lógicas, até esbarrarem na história de uma médium poderosa que habitava uma comunidade piscatória.
Em toda a honestidade, dificilmente se encontra uma sinopse mais estúpida: uma cassete que a mata quem a vê em 7 dias? Além de que por estes dias, está desactualizada, já ninguém possui cassetes VHS. O número de vítimas mortais é, na melhor das hipóteses, diminuto. Por isso, estime-se a capacidade de Hiroshi Takahashi em adaptar o livro de Koji Suzuki e a mestria do realizador Hideo Nakata para tornar um absurdo no filme de terror japonês mais rentável de sempre.
Ao voltar a ver “Ring” descobri que confundia alguns conceitos do original e o remake “The Ring” (2000), de Verbinski. O vídeo amaldiçoado da versão americana é claramente mais assustador e permite retirar mais pistas sobre a origem do fenómeno do que o vídeo original. Mas é na atmosfera (lá está a palavra), que a nova versão perde. No remake é possível destrinçar os momentos de alívio dos aterradores. Em “Ring” a atmosfera é singularmente opressiva. Mesmo numa cena banal, na qual Reiko perscruta o horizonte de uma janela, permanece a sensação de que se vai precipitar um acontecimento qualquer conducente a um grande susto. A acompanhar está a banda-sonora subtil, do veterano Kenji Kawai ["Ghost in the Shell" (1995), "Ip Man" (2008)], que se distingue dos habituais momentos “Tcharan” de uma nota grave de piano desconcertado.Outra força do filme original é a dinâmica entre Reiko e Ryuji. Ele é a força dominante, pragmático, sempre seguro, o porto de abrigo perfeito para a frágil Reiko. Esta dupla sempre é mais plausível do que a “The Ring”, onde me custa a acreditar que o pai de uma criança nascida de uma relação casual se oferecesse para se tornar um cavaleiro andante. O mais provável seria à vista da mãe da criança fugir para não lhe acenarem com as despesas do puto e coisas que tais. “Ring” também trouxe um interesse renovado sobre a tecnologia e os seus perigos para o ser humano. Claro que sempre num sentido figurado: muitas horas na TV deixa-nos tipo zombies, atrasa o desenvolvimento, impede a socialização, etc. Até então, pouco se tinha reflectido no ecrã como interveniente no mundo físico e transmissor da morte. Esta é encarnada na figura mais improvável: Sadako, uma rapariga frágil, um “onryo” japonês. Independentemente, da opinião que se tenha de “Ring”, ele tem um lugar na história e os seus méritos ainda se irão propagar no tempo. O filme teve um efeito propagador e reprodutor dos medos provenientes do folclore japonês, com inúmeras sequelas, remakes e filmes nele inspirados e séries lucrativas a surgir apenas devido à sua influência. Isto significa que ainda teremos de ver muitas rapariguinhas de cabelo desalinhado e aparelhos tecnológicos amaldiçoados, até o interesse desvanecer. O efeito “Ring” propaga-se no futuro mas no imediato reside uma questão bem mais importante. Assusta? Vi “Ring” à noite na escuridão. E conseguir arranjar coragem para acender a luz depois de o ver? Quatro estrelas.

Realização: Hideo Nakata
Argumento: Hiroshi Takahashi e Koji Suzuki
Nanako Matsushima como Reiko Asakawa
Hiroyuki Sanada como Ryuji
Rikiya Otaka como Yoshi
Yuko Takeuchi como Tomoko

Próximo Filme: "Echoes of the Rainbow" (Sui yuet san tau, 2010)

4 comentários:

  1. Enfim, nem preciso de dizer muito, é que disseste mesmo tudo! É um grande clássico! Mas por acaso penso que a versão americana foi bastante fiel, e é dos poucos casos em que o remake não arruína o original ;)

    Sarah
    http://depoisdocinema.blogspot.com

    ResponderEliminar
  2. Sarah, o meu preferido é o clássico. No entanto, acho que o Verbinski aproveitou as forças e melhorou outros aspectos. Acho a narrativa muito mais fluída do que no original. De resto é como dizes, não arruína o original e é um bom filme por si só.

    ResponderEliminar
  3. Olá. Dito isto, ao ataque :)

    Gore Verbinski, que vinha de uma comédia com um rato digital, criou um filme de terror policial fabuloso. Em relação ao original, a história é muito mais clara, lógica e empática. No original, o facto de o companheiro da jornalista ser um medium foi um grande facilitismo, que fez a história andar para a frente na onda do porque sim. No remake, houve mesmo que juntar pistas e o filme permite-nos acompanhá-lo enquanto também temos encontrar respostas. E o "ambiente" do remake é muito melhor. Curiosamente, ainda vi o Ringu em VHS.

    Quando à relação dos pais do miúdo no remake, ele claramente ainda gosta dela. lá porque o sexo foi casual e não estão juntos, não quer dizer que o amor se dissipe ou que se faça o possível por ajudar quem se ama.

    Nada impede que gostes de Kenji Kawai, eu tenho uma batelada de bandas sonoras dele, agora fazê-lo ganhar à tétrica música de Hans Zimmer é que não... o compositor alemão passou os anos 80 e 90 a inovar e só depois de Ring é que teve o seu meltdown, que se compreende pelos problemas judiciais que teve com o sócio do estúdio MediaVentures.

    E, claro, o sucesso de Ring é que permitiu olhar-se para o horror asiático, que era um nicho que praticamente não saía de portas, e deu a oportunidade a Verbinski de agarrar o grande orçamento de Piratas das Caraíbas, uma vez mais com banda sonora de Hans Zimmer (e que no Youtube se pode ver que tem sido tocada e adaptada por gente famosa e desconhecidos ahoy).

    Não são muitos os casos em que o remake é melhor do que o original, mas este é um deles. Não sei se este comentário parece agressivo (espero que não), mas o Ring é daqueles filmes por que tenho uma estima especial :)

    ResponderEliminar
  4. Ok. Vamos por pontos. Em nenhuma altura disse que o remake era mau, péssimo ou algo que se pareça. Disse isso sim e reafirmo que prefiro o clássico.
    O "ambiente" sorry, é melhor no original. No remake tens pausas para descanso, no original, nunca sabes onde ou quando vai acontecer algo.
    Relativamente à relação entre os pais do Yoshi, acredito muito mais na relação da versão japonesa do que no americano. Compreendo o que queres dizer quando ainda há afecto no caso dele mas, a ser verdade que ela tinha visto um vídeo que é uma sentença de morte... que ele tenha ido logo a correr ver a cassete é um esticanço.
    Quanto a banda-sonora eu não a comparei à do Hans Zimmer por que tão simplesmente não fiz a análise de ambos os filmes. A minha apreciação focou tão somente o Ringu sendo que destaquei apenas alguns pontos face ao remake onde considerei existir uma maior destrinça. Além de que só revi o Ringu, teria de ver novamente o The Ring para tal.
    Mas nota que por exemplo, o vídeo, hands down, é muito mais assustador no remake e faz muito mais sentido, em termos de compreensão do mistério do que em Ringu.
    Em última análise e compreendendo o carinho que sentes pelo remake, que não deixa de ser um grande filme, não tentei superiorizar um por oposição ao outro, até por que não foi esse o objectivo.

    ResponderEliminar