Desde o início dos créditos iniciais, até ao momento em que surgem duas adolescentes na tela, que algo nos diz, o instinto se desejarem, que algo não está bem. O sentimento de opressão não é reduzido pelo facto de vermos duas jovens a rir e a partilhar mexericos. Uma delas principia a contar um rumor, daqueles que se ouvem na escola, contados por terceiros, que também não sabem quem contou a história inicial. Supostamente existe uma cassete VHS, cujo conteúdo mata quem a vê, dentro de 7 dias. Por entre sorrisos, a contadora de histórias admite que já a viu. Elas trocam um olhar perscrutador. O telefone toca.
Reiko Asakawa (Nanako) entra em acção. Ela é uma repórter. A curiosidade está-lhe no sangue e este ferve quando descobre que a sobrinha Tomoko (Yuko Takeuchi), que faleceu recentemente em circunstâncias suspeitas terá visto o vídeo. Ela entra no mundo dos jovens, onde os mitos urbanos e as superstições são um lugar-comum. Em paralelo com a sexualidade, são explorados os mistérios da vida e da morte e predomina uma vontade de impressionar os amigos com histórias de arrojo. E nessa senda de ser o “puto mais fixe” do grupo adoptam atitudes perigosas, irresponsáveis e irreflectidas. Desafiam-se a fazer o jogo do copo (tábua ouija), incitam-se a olhar ao espelho e invocar espíritos, desafiam-se a visualizar cassetes amaldiçoadas… Reiko, não quer ficar de fora, o desejo de saber é mais forte que ela e a investigação leva-a a um hotel na província onde encontra a dita cassete. O que vê é desconcertante. Depois o telefone toca e a realização de que a maldição é verdadeira. O medo instala-se e recruta o ex-marido Ryuji (Hiroyuki Sanada) para a ajudar a quebrar a maldição. Quando Reiko surge pela primeira vez no ecrã transmite uma aura de despreocupação e desprendimento face ao filho Yoshi (Rikiya Otaka). Assim, que se apercebe da sua iminente mortalidade e, por que os pais não conseguem controlar o que os filhos fazem, Yoshi vê a cassete, a fachada cai. Agora, desvendar o mistério deixa de ser imprescindível, é vital. Seguimos Reiko e Ryuji numa investigação cujas conclusões não são necessariamente as mais lógicas, até esbarrarem na história de uma médium poderosa que habitava uma comunidade piscatória.
Em toda a honestidade, dificilmente se encontra uma sinopse mais estúpida: uma cassete que a mata quem a vê em 7 dias? Além de que por estes dias, está desactualizada, já ninguém possui cassetes VHS. O número de vítimas mortais é, na melhor das hipóteses, diminuto. Por isso, estime-se a capacidade de Hiroshi Takahashi em adaptar o livro de Koji Suzuki e a mestria do realizador Hideo Nakata para tornar um absurdo no filme de terror japonês mais rentável de sempre.
Ao voltar a ver “Ring” descobri que confundia alguns conceitos do original e o remake “The Ring” (2000), de Verbinski. O vídeo amaldiçoado da versão americana é claramente mais assustador e permite retirar mais pistas sobre a origem do fenómeno do que o vídeo original. Mas é na atmosfera (lá está a palavra), que a nova versão perde. No remake é possível destrinçar os momentos de alívio dos aterradores. Em “Ring” a atmosfera é singularmente opressiva. Mesmo numa cena banal, na qual Reiko perscruta o horizonte de uma janela, permanece a sensação de que se vai precipitar um acontecimento qualquer conducente a um grande susto. A acompanhar está a banda-sonora subtil, do veterano Kenji Kawai ["Ghost in the Shell" (1995), "Ip Man" (2008)], que se distingue dos habituais momentos “Tcharan” de uma nota grave de piano desconcertado.Outra força do filme original é a dinâmica entre Reiko e Ryuji. Ele é a força dominante, pragmático, sempre seguro, o porto de abrigo perfeito para a frágil Reiko. Esta dupla sempre é mais plausível do que a “The Ring”, onde me custa a acreditar que o pai de uma criança nascida de uma relação casual se oferecesse para se tornar um cavaleiro andante. O mais provável seria à vista da mãe da criança fugir para não lhe acenarem com as despesas do puto e coisas que tais. “Ring” também trouxe um interesse renovado sobre a tecnologia e os seus perigos para o ser humano. Claro que sempre num sentido figurado: muitas horas na TV deixa-nos tipo zombies, atrasa o desenvolvimento, impede a socialização, etc. Até então, pouco se tinha reflectido no ecrã como interveniente no mundo físico e transmissor da morte. Esta é encarnada na figura mais improvável: Sadako, uma rapariga frágil, um “onryo” japonês. Independentemente, da opinião que se tenha de “Ring”, ele tem um lugar na história e os seus méritos ainda se irão propagar no tempo. O filme teve um efeito propagador e reprodutor dos medos provenientes do folclore japonês, com inúmeras sequelas, remakes e filmes nele inspirados e séries lucrativas a surgir apenas devido à sua influência. Isto significa que ainda teremos de ver muitas rapariguinhas de cabelo desalinhado e aparelhos tecnológicos amaldiçoados, até o interesse desvanecer. O efeito “Ring” propaga-se no futuro mas no imediato reside uma questão bem mais importante. Assusta? Vi “Ring” à noite na escuridão. E conseguir arranjar coragem para acender a luz depois de o ver? Quatro estrelas.
Realização: Hideo Nakata
Argumento: Hiroshi Takahashi e Koji Suzuki
Nanako Matsushima como Reiko Asakawa
Hiroyuki Sanada como Ryuji
Rikiya Otaka como Yoshi
Yuko Takeuchi como Tomoko
Próximo Filme: "Echoes of the Rainbow" (Sui yuet san tau, 2010)
Enfim, nem preciso de dizer muito, é que disseste mesmo tudo! É um grande clássico! Mas por acaso penso que a versão americana foi bastante fiel, e é dos poucos casos em que o remake não arruína o original ;)
ResponderEliminarSarah
http://depoisdocinema.blogspot.com
Sarah, o meu preferido é o clássico. No entanto, acho que o Verbinski aproveitou as forças e melhorou outros aspectos. Acho a narrativa muito mais fluída do que no original. De resto é como dizes, não arruína o original e é um bom filme por si só.
ResponderEliminarOlá. Dito isto, ao ataque :)
ResponderEliminarGore Verbinski, que vinha de uma comédia com um rato digital, criou um filme de terror policial fabuloso. Em relação ao original, a história é muito mais clara, lógica e empática. No original, o facto de o companheiro da jornalista ser um medium foi um grande facilitismo, que fez a história andar para a frente na onda do porque sim. No remake, houve mesmo que juntar pistas e o filme permite-nos acompanhá-lo enquanto também temos encontrar respostas. E o "ambiente" do remake é muito melhor. Curiosamente, ainda vi o Ringu em VHS.
Quando à relação dos pais do miúdo no remake, ele claramente ainda gosta dela. lá porque o sexo foi casual e não estão juntos, não quer dizer que o amor se dissipe ou que se faça o possível por ajudar quem se ama.
Nada impede que gostes de Kenji Kawai, eu tenho uma batelada de bandas sonoras dele, agora fazê-lo ganhar à tétrica música de Hans Zimmer é que não... o compositor alemão passou os anos 80 e 90 a inovar e só depois de Ring é que teve o seu meltdown, que se compreende pelos problemas judiciais que teve com o sócio do estúdio MediaVentures.
E, claro, o sucesso de Ring é que permitiu olhar-se para o horror asiático, que era um nicho que praticamente não saía de portas, e deu a oportunidade a Verbinski de agarrar o grande orçamento de Piratas das Caraíbas, uma vez mais com banda sonora de Hans Zimmer (e que no Youtube se pode ver que tem sido tocada e adaptada por gente famosa e desconhecidos ahoy).
Não são muitos os casos em que o remake é melhor do que o original, mas este é um deles. Não sei se este comentário parece agressivo (espero que não), mas o Ring é daqueles filmes por que tenho uma estima especial :)
Ok. Vamos por pontos. Em nenhuma altura disse que o remake era mau, péssimo ou algo que se pareça. Disse isso sim e reafirmo que prefiro o clássico.
ResponderEliminarO "ambiente" sorry, é melhor no original. No remake tens pausas para descanso, no original, nunca sabes onde ou quando vai acontecer algo.
Relativamente à relação entre os pais do Yoshi, acredito muito mais na relação da versão japonesa do que no americano. Compreendo o que queres dizer quando ainda há afecto no caso dele mas, a ser verdade que ela tinha visto um vídeo que é uma sentença de morte... que ele tenha ido logo a correr ver a cassete é um esticanço.
Quanto a banda-sonora eu não a comparei à do Hans Zimmer por que tão simplesmente não fiz a análise de ambos os filmes. A minha apreciação focou tão somente o Ringu sendo que destaquei apenas alguns pontos face ao remake onde considerei existir uma maior destrinça. Além de que só revi o Ringu, teria de ver novamente o The Ring para tal.
Mas nota que por exemplo, o vídeo, hands down, é muito mais assustador no remake e faz muito mais sentido, em termos de compreensão do mistério do que em Ringu.
Em última análise e compreendendo o carinho que sentes pelo remake, que não deixa de ser um grande filme, não tentei superiorizar um por oposição ao outro, até por que não foi esse o objectivo.