segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Suores Frios - "Ben Gardner, Pescador Zarolho" - por David Martins

Sinopse: Em Amity um tubarão branco estraga a economia local em plena época balnear. E come alguns turistas também.

Tudo o que se podia escrever sobre este portento já deve ter sido escrito nas ultimas quatro décadas, mas vamos lá. Um realizador prodigio e um filme prodígio que mudou a face do cinema moderno. Mas de todas as cenas de suspense e "susto" escolho o momento em que no destroço do barco afundado aparece a cabeça do pescador a cumprimentar o mergulhador Matt Hooper.

Mais que suor, esta cena proporcionou-me o que é conhecido pelo nome técnico de "cagaço". 

Se a minha esburacada memória me serve bem, a primeira vez que vi o filme foi algures nos anos 90, numa noite de Verão. O ecrã era uma pequena televisão a preto e branco que funcionava a bateria e já toda a gente na nossa casa na ilha estava a dormir. E foi estendido no sofá no escuro que apanhei o grande susto de ver surgir entre um rombo nas tábuas do barco de pesca os restos mortais do pescador Ben Gardner. A cabeça flutua entre as tábuas de forma sinistra, sem o olho esquerdo e a pele com um tom doentio esverdeado. Cor esverdeada, pelo menos na memória. Porque se eu pelo menos na primeira vez vi em preto e branco, a recordação da cor verde deve ter sido influencia do relato da minha mãe, que já me tinha contado que quando ela viu o filme nos anos 70 também se impressionou (acrescentou que de todo o filme só se recorda desse momento). O cinema a unir gerações. 

Andei a ver vários vídeos recentemente, e a tal cor verde tem a ver com as diferenças de color grading e condições dos vários relançamentos e remasterizações. Não continuo grande fã de filmes de terror, e provavelmente esta cena ajudou. Ironicamente, um momento tão recordado foi filmada numa piscina e acrescentada ao filme quase no final do prazo.

É um jump scare, coisa que aprendi a abominar nas décadas seguintes. Mas, segundo um video que disseca a cena no Youtube, continua a proporcionar "cagaço" em visionamentos posteriores devido à forma diferente como está estruturado dos barulhentos jump scares modernos.

Claro que depois de ter visto o filme tantas vezes, a antecipação abafa o impacto da cena, e o boneco já não parece tão impressionante. 

E as ultimas vezes que a revi foram em forma isolada no Youtube, portanto o efeito está praticamente ausente. Mas aposto que para primeiros visionamentos, o "cagaço" continua lá...

 David Martins (do CINE31

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Suores Frios - "Ter medo é coisa que não me assiste" - por Vítor Rodrigues


Tenho uma relação muito especial e invejosa com o terror. Se por um lado sei que não estou a apreciar correctamente um género cinematográfico com mérito próprio, por outro não consigo entender de todo o fascínio. Permitam então que me envergonhe...

Se eu não gosto de ser assustado na vida real, porque haveria de o querer numa sala de cinema? Porque hei-de pagar para me sentir contraído e receoso com o que aí vem? Poderão falar-me em rush de adrenalina ou até que o terror não é sinónimo de jump scares, mas ainda assim não me convencem. É então com extrema vergonha que apresento três momentos que me marcaram e cimentaram a minha convicção.

Em 1997, com 13 anos, lembro-me de ficar “cagado” com o início de Men in Black. Sim, a comédia com Will Smith (eu não disse que vinha aqui envergonhar-me?!). A verdade é que aquela cena inicial em que um alien “caça” Tommy Lee Jones deixou-me apreensivo até quase meio do filme, receando o que aí pudesse vir. Aos 15 aventurei-me “à séria” com o género e vi o Projecto Blair Witch. Único filme que vi no velhinho XXX, e dos poucos que tive de me sentar na zona lateral da sala, por esta estar já tão lotada. Lembrem-se que esta é uma altura pré-internet, logo, tudo o que eu estou a ver é “real”! Saí daquela sala perfeitamente convencido que tinha visto um documentário. A imagem final, em que a camêra cai e um dos jovens está virado para o canto da sala ficará gravado na minha memória para todo o sempre.

O meu último exemplo é o mal amado Signs de 2002, com Mel Gibson e Joaquin Phoenix. Poderia escolher várias cenas de tensão em campos de milho ou o final na casa, mas a cena que mais me marcou é a de um noticiário, em que é reproduzido um video amador do Brasil e do nada surge um alien. Apanhou-me tão despercebido que me encheu de medo. Não de susto, mas de medo.



Estes exemplos completamente lights fizeram-me perceber que não tinha nem mãozinhas nem palato para terror valente. Uma grande parte de mim tem ainda um preconceito real com o género que não consigo afastar. Há uma pobreza de ideias revolucionárias e recurso a artimanhas repetitivas em argumentos fracos que usam o terror como muleta, em vez de uma característica secundária. Consciente que falo de certeza do alto pedestal da ignorância, mas ainda assim, é o meu pedestal.

Aos 36 já podia ganhar vergonha na cara e ver umas obras primas. Afinal de contas, quando vi o Exorcista, anos depois de todos os meus amigos, encontrei mais comédia que terror. Men in Black é agora pura comédia e Blair Witch perdeu o “encanto” depois de perceber que era tudo mentira. Talvez um palato mais maduro me fizesse despertar para novas sensações... mas, tenho medo...

O Vítor escreve umas coisas no Vida em Série e no Séries da TV e pode ser encontrado no Twitter a pastar...

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Suores Frios - "A mão que embala o medo" - por António Araújo


Carrie, realizado por Brian De Palma em 1976 segundo adaptação de Lawrence D. Cohen do primeiro romance de Stephen King, conta a história de Carrie White, uma jovem tímida e inadaptada, gozada pelas colegas e aterrorizada pela mãe fanática religiosa, que descobre ter poderes telecinéticos, o que vem a dar muito jeito quando é vítima de uma elaborada e cruel piada à frente da escola toda na noite do baile de finalistas. No meu caso, quem me aterrorizava era a minha tia, também religiosa, se bem que não tão fanática, censurando-me a cada oportunidade na sua convivência constante na nossa casa. Porém, nos fins-de-semana em que dormia em casa da minha tia, por certo para aliviar os meus pais de ter de aturar uma criatura menor de idade cujo único sonho parecia ser o desejo impossível de ter um videogravador de cassetes VHS, testemunhava uma milagrosa e radical transformação: o demónio implicativo que conhecia durante a semana mutava-se nestas alturas em santa permissiva, aproveitando eu para ver todos os filmes que passavam na televisão tarde e a más horas, e que os meus pais nunca me teriam deixado ver. Foi assim que o meu destino se cruzou com o de Carrie.
Assisti tenso e com uma falsa sensação de segurança dada pelas mantas puxadas até aos olhos a raparigas adolescentes despidas, bullying, menstruações — o suficiente para afligir de mil e uma formas qualquer pubescente —, e, menos problemático, matricídio por empalamento com tesouras e facas pelo poder da mente, além de chacina generalizada de toda uma escola. Depois de sobreviver à atribulada jornada, com o fim do filme à vista e profundamente orgulhoso da minha coragem, a minha ingenuidade foi-me roubada que nem tapete puxado à traição debaixo dos pés. Quando a arrependida Sue deposita flores na campa de Carrie, aquela ensanguentada mão que desponta pelo meio das pedras abalou o meu íntimo e traumatizou-me profundamente. Durante semanas, senti calafrios só de pensar naquele momento. O escuro passou a ser um traiçoeiro companheiro, potencialmente camuflando Carrie, escondida à espera para me agarrar ao virar da esquina. O corredor minúsculo da minha casa, que me levava da sala à casa de banho, com o interruptor apenas numa das pontas, passou a assistir a correrias desenfreadas pela vida de um miúdo amedrontado pelo espectro daquela cena. Foi esse o momento do meu primeiro contacto com finais-choque (ou twists finais, para ser mais moderno), o que não só me preparou para a restante filmografia de De Palma como para a obra de outro autor meu favorito descoberto pela mesma altura: John Carpenter. Nada mais foi como dantes. Passei a desconfiar e a questionar o que via na tela, em constante expectativa pela possibilidade de poder ser abalado por um filme, por muito que isso me pudesse assustar. O cinema, desde aí, passou a envolver alguma dose de perigo, e  essa experiência, não a trocaria por mais nada.

O António Araújo é um cinéfilo com pretensões artísticas, mas talento reduzido (palavras do próprio, não minhas!), que se mascara de consultor de sistemas de informação durante o dia para se revelar à noite como apaixonado podcaster. É autor do Segundo Take e co-autor do Universos Paralelos, que podem ser ambos encontrados em www.segundotake.com. Colabora também com a Take Cinema Magazine (https://take.com.pt) onde é redactor e editor-adjunto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Suores Frios - "Pesadelo no Videoclube" - por Carla Rodrigues


No início dos anos 90, eu era uma miúda assustadiça, com uma imaginação muito viva e, por isso, com facilidade em extrapolar da ficção para a realidade uma série de cenários aterrorizantes. Fugia de tudo o que fosse minimamente inquietante ou assustador. Nessa altura, havia um videoclube perto de casa dos meus avós no qual passava muito tempo. Fiz-me sócia e sempre que podia, alugava filmes. Quando não podia, vagueava pelas prateleiras, admirava as capas, jogava Mega Drive e apanhava bocados dos filmes que passavam na TV do videoclube. Era normal terem sempre um filme a rolar, para suscitar a curiosidade de quem lá entrava e, quem sabe, potenciar o aluguer. Neste belo dia em que lá fui, estava a dar um filme que me marcou para sempre.
O filme era nada mais, nada menos que Pesadelo em Elm Street. Uma escolha estranha para dar, de tarde, num videoclube que era frequentado por miúdos à caça dos filmes das Tartarugas Ninja ou apenas à procura de poderem jogar mais um nível do Sonic. O clássico de Wes Craven apresenta-nos um grupo de amigos adolescentes que, um por um, sucumbem aos ataques de um louco que os persegue em sonhos com uma luva tunning na qual cada dedo é encabeçado por uma faca. 
Fui roubando olhares ao ecrã. O filme estava mesmo no início. Comecei a desconfiar que não ia sair dali nada de bom porque, logo na sequência inicial, havia um excesso deplorável de facas. Aparece uma rapariga, perdida numa sala de caldeira, cheia de vapores estranhos, corredores labirínticos, com um tipo estranho atrás dela. Ela não devia estar ali. E eu não devia estar a ver aquilo. Afinal, parece que era só um pesadelo que a rapariga estava a ter. O filme entra numa parte de maior calma. Mas cai a noite outra vez. E lá aparece a rapariga perdida, a ser perseguida pelo louco das facas. Desta vez, vemo-lo melhor. Estão os dois num beco. Ele segue-a, devagar, a rir-se. Os braços dele alongam-se, expandem, tocam nas paredes do beco. As facas da mão direita fazem faísca na parede. 
 
Aqui, eu estava colada ao ecrã, a sentir aquele pânico surdo que nos invade a alma e que nos torna incapazes de sair do sítio. A cena só piora – a rapariga não consegue fugir e é prontamente vindimada pelo gajo das facas. Percebemos que a morte no sonho representa a morte na vida real com uma das mais marcantes cenas do cinema de terror. No quarto onde dormia, vemos a rapariga ser arrastada por uma força invisível, que a puxa parede acima, parece abaixo, pelo tecto, enquanto lhe vão surgindo golpes no corpo, infligidos por essa mesma força invisível. 
Não sei como é que me consegui descolar do chão. Mas mal me consegui mexer, saí porta fora do videoclube sem olhar para trás e não parei enquanto não cheguei a casa. Esta sequência marcou-me para sempre - e estranhamente, mais do que a violência de toda a cena, o que ficou comigo foram os braços a esticar, as facas a fazerem faísca na parede, e o riso sinistro de um louco de rosto queimado que aparecia nos sonhos das pessoas. Tive pesadelos durante semanas e tive tanto medo que não vi filmes de terror durante vários anos. 
Eventualmente, comprei e vi todos os filmes da saga Pesadelo em Elm Street, que é de longe o meu franchise favorito de entre os três grandes franchises do terror. É a saga mais criativa e arrojada – nem todos os filmes são bons, é certo, mas são sempre divertidos e com ideias que, apesar de nem sempre resultarem, são audazes. O original é o melhor - um filme de terror com uma originalidade e um atrevimento brilhantes. É sagaz, afiado como as lâminas da luva do Freddy Krueger. Aterrorizou-me quando era criança, mas deixou a semente de um grande amor pelo género de terror e, por isso, estarei para sempre grata. 


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