terça-feira, 13 de outubro de 2020

Suores Frios - "A Imparável Marran" - por Daniel Reifferscheid

Admiro bastante a estratégia que os meus pais desenvolveram para guiar o meu consumo mediático enquanto petiz - nada estava propriamente proibido, e podia inclusive ficar na sala enquanto eles viam coisas que muitos pais não deixariam chegar perto dos seus filhos (filmes do Bunuel, Rocky Horror Picture Show, o 200 Motels do Frank Zappa), mas ao mesmo tempo tudo era contextualizado, não havia consumo passivo. Podia por exemplo vibrar à vontade com as aventuras do Batman, mas ao mesmo tempo o meu pai me explicava porque é que discordava de uma abordagem punitiva ao crime, e que problemas tinha com a história de um milionário que passa o seu tempo a violentar pessoas com distúrbios mentais. Pode soar ridículo, mas em retrospectiva estou muito grato por me terem criado assim - tive o prazer de consumir toda e qualquer cultura Pop, sentindo-me ao mesmo tempo confortável em aceitar que há mensagens inerentes a muita coisa que consumo nas quais não me revejo minimamente. 

Ao mesmo tempo, creio que os meus pais tiveram o seu trabalho facilitado pelo seguinte factor: terem um filho medricas.

Quando fui gentilmente convidado a participar nesta coluna, o maior problema que se me colocou imediatamente foi: como escolher? A minha infância está recheada de pequenos traumas, noites em branco fruto de todo o tipo de entretenimento. E claro que, crescendo numa aldeia em S. Miguel, não era preciso muito para passar por cobarde - finda a escola primária, todos os meus colegas já tinham digerido as franchises Halloween, Friday The 13th e Nightmare On Elm Street completas. Filmes de terror desses “a sério” eu nem me aproximava, mas mesmo assim conseguia aumentar medos e ansiedades com todo o tipo de monstrengos: temia principalmente vampiros (tanto que escrevinhava crucifixos nas paredes do meu quarto, levando a minha mãe a perguntar-se se tinha dado em gótico ou cristão), mas também havia espaço para o culto assassino em Young Sherlock Holmes (1985), para o Jabberwocky de Terry Gilliam e para os dois segundos e meio que apanhei sem querer do desenho animado Tales From The Cryptkeeper.

Parece que não havia história inofensiva o suficiente para não a conseguir transformar numa ameaça quando era pequeno. Nem mesmo uma adorada franchise infantil finlandesa. 

A série Mumin não dirá muita coisa a um público português, mas em grande parte da Europa são tão adorados como qualquer Clube das Chaves ou Uma Aventura, e com muita boa razão: os livros originais, escritos pela finlandesa Tove Jansson, são da melhor literatura infantil que existe e, arrisco-me a dizê-lo, da melhor literatura do século vinte, ponto. Para dar só um cheirinho, eis a génese desta simpática família de trolls com aspecto de hipopotámo: aos treze anos, a jovem Tove teve uma discussão violenta com o irmão mais velho acerca do filósofo alemão Kant. Tão enraivecida estava ela que marchou para a casa de banho, sacou de um lápis e desenhou na parede a criatura mais feia que conseguiu conceber - e assim nasceu a família Mumin.

Com esse contexto, já devem ter adivinhado que as histórias de Jansson não são contos infantis genéricos: são histórias carregadas de uma profunda melancolia, e cujas personagens frequentemente exibem problemas a tender para o existencial. Como tal, a Marran (Morra em alemão, Groke em inglês), espécie de vilã dessas histórias (o rótulo é na verdade bastante redutor) também não exibe os traços de um mauzão típico. Não é motivada pela ganância nem pela vontade de destruir o mundo; não irrompe em ataques de raiva; não possui capangas nem esquemas. É, tão somente, uma criatura negra, redonda, que traz a miséria a tudo que toca. 

Esta criatura aparece em vários livros da série, mas o meu contacto com ela enquanto criança veio principalmente através de uma parte da adaptação para anime da saga: nesta, os Mumins conhecem dois pequenos duendes que usam a casa da família como asilo após terem roubado algo que pertence à Marran. Inevitavelmente ela aparece para reaver o que lhe foi roubado; a família defende os pequenos duendes, mas negociar com a entidade parece impossível.

Como sempre nestas coisas, a minha lembrança é bastante diferente do que realmente acontece no episódio, que pode ser visto aqui (https://youtu.be/O-WWdLx0V1Y) - , disponibilizado gratuitamente pela conta oficial dos Mumins. Na minha memória, o confronto final entre os protagonistas e a Marran, com o pai Mumin de espingarda à porta, acaba com o monstro simplesmente a retrair-se, por razões obscuras, deixando muito claro que as acções da família são irrelevantes para a questão; na verdade, a Marran retira-se porque o pai Mumin lhe dá alguns segundos após os quais irá disparar. Pior ainda, a Marran despede-se com um Schwarzeneggeriano “I’ll be back!”; na minha memória era um monstro completamente mudo.

Mas mesmo assim, consigo ainda sentir um pouco daquilo que me aterrorizou em pequeno: a Marran como uma ameaça fatalista, que mais cedo ou mais tarde irá triunfar (a própria narração do episódio sugere isso); e também uma ameaça que vai para além da razão, com a qual é impossível comunicar, quanto mais negociar. Devo mencionar que a série animada dos Mumins não é tida em muito boa conta entre os apreciadores das obras de Jansson - a animação é bastante limitada e os enredos não completamente fieis à autora. No entanto, estaria a mentir se dissesse que parte do impacto que teve sobre mim não se deveu à interpretação que a série fez. Na versão que eu vi (existem várias) era negra, com um sorriso vazio estampado na cara. Some-se a isso também a banda sonora - ao reouvir o seu tema (https://youtu.be/jHyR8kD2Uuw) hoje detecto uma semelhança com algumas das composições mais macabras de Ennio Morricone (Le Trio Infernal - https://youtu.be/WzKYIIBLPbc, por exemplo), mas com um travo synth mais pronunciado.

Nos livros, a criatura acaba por ser mais ambígua - condenada ao frio e à solidão pela natureza, por vezes pode ser ouvida a uivar de desgosto, sozinha na floresta. De facto não existem verdadeiros vilões nem heróis num universo soficticado como o de Janssen. Mas nos meus pesadelos, será sempre uma ameaça imparável, a aproximar-se…e aproximar-se…

Daniel Reifferscheid é o anfitrião do podcast de cinema português Prestes A Ver (prestesaver.libsyn.com), bem como do programa de rádio You Know The Score, especializado em bandas sonoras, transmitido na Rádio Quântica. Aos trinta e cinco anos tem orgulho em dizer que já consegue ver filmes da Hammer sem ter medo e que, chegado aos quarenta, deverá estar pronto para experimentar o The Exorcist


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