sábado, 17 de março de 2018

"The Happiness of the Katakuris" (Katakuri-ke no kôfuku 2001)


Comédia musical de terror. Se calhar é difícil vender um produto destes. E no entanto, em simultâneo, parece mesmo aquele tipo de produtos que só podiam sair do estranho Japão. “Happiness of the Katakuris” baseia-se na película sul-coreana “The Quiet Family”, realizada apenas três anos antes por Jee-won Kim cuja obra já foi mencionada por diversas vezes (“A Tale of Two Sisters” e “I Saw the Devil”, são alguns bons exemplos). Em “The Quiet Family” uma família proprietária de uma estalagem vê os hóspedes falecer, um após outro, nas circunstâncias mais infelizes. Desta feita, Takashi Miike apresenta os azarados Katakuris que arriscaram todas as finanças da família numa estalagem perto de uma antiga lixeira, com base no rumor da construção de uma estrada ali perto, de caminho para o Monte Fuji, pitadas de animação em stop motion e números musicais inesperados. O boom turístico não se verifica e os poucos hóspedes que por ali passam, acabam por falecer de modo inesperado para a família que decide em conjunto esconder os cadáveres. Se é um morto já é mau para o negócio imaginem dois ou três! Os eventos são narrados por Yurie (Tamaki Miyazaki) o elemento mais novo da família, a neta do patriarca Masao (Kenji Sawada) que observa os seus parentes com o amor inocente de uma criança, sem descurar a evidente excentricidade dos Katakuris. A família é assim composta por Masao, a sua amada esposa e por vezes voz da razão Terue (Keiko Matsuzuka); o filho com um passado de desonestidade Masayuki (Shinji Takeda); a filha divorciada e obcecada pelo amor romântico, a ponto da cegueira infantil Shizue (Naomi Nishida); a sua pequenota Yurie, o avô com acessos ocasionais de mau génio Jinpei (Tetsuro Tanba) e o cão Pochi.

A palavra que melhor descreve “The Happiness of the Katakuris” é: surreal. Inicia-se com uma sequência na qual uma personagem feminina come uma tigela de ramen, da qual sai um querubim em versão demoníaca que a ataca, numa das cenas mais insanas e, curiosamente, terríficas do filme. A cena inicia-se em formato live-action para logo se transformar numa animação stop motion de plasticina, que faz a transição para a vida não tão sossegada e sem intercorrências quanto isso dos Katakuris, a despeito de eles assim o desejarem. A personagem feminina nunca mais volta a aparecer no ecrã mas cedo se percebe que esse não será o acontecimento mais bizarro do filme.
As personagens desatam em cantoria ou prantos desalmados e desafinados nos momentos mais inesperados que ao invés de cómicos parecem desajustados num filme que é ele próprio desajustado dos tempos e das expectativas de quem viu o original coreano. A única constante é o intenso amor entre os membros daquela família apesar de estes serem dotados de uma patologia colectiva que os impede de tomar decisões acertadas. “The Happiness of the Katakuris” quebra algumas regras e Takashi Miike não é inexperiente no que toca à fuga de padrões. A sua carreira é certamente colorida mas “Katakuris” é, no mínimo divisivo. Enquanto posso apreciar o mérito no mix de géneros e de técnicas e sim, a alusão a "The sound of Music" e "Dawn of the Dead" ficam-se pelo fraco a incipiente, acaba por falhar no mais importante: ter sucesso enquanto comédia, quanto mais comédia musical de terror. Duas estrelas.

Realização: Takashi Miike
Argumento: Kikumi Yamaguchi e Ai Kennedy
Kenji Sawada como Masao Katakuri
Keiko Matsuzaka como Terue Katakuri
Shinji Takeda como Masayuki Katakuri
Naomi Nishida como Shizue Katakuri
Kiyoshirô Imawano como Richâdo Sagawa
Tetsurô Tanba como Jinpei Katakuri
Tamaki Miyazaki como Yurie Katakuri

Próximo Filme: "The Ritual", 2017

quinta-feira, 1 de março de 2018

"Tale of Tales" (Il racconto dei racconti, 2015)


“Tale of Tales” é uma película apresentada em estilo mosaico composta por contos tão antigos que precedem os ilustres irmãos Grimm. Essas estórias integram “Il Pentamerone”, obra póstuma do poeta e autor Giambattista Basile do séc. XII, que se situam algures numa Itália imbuída do espírito do estilo Barroco.

“The Queen” – No reino de Longtrellis vive uma rainha (Salma Hayek) infeliz por ser incapaz de gerar um filho. Ao rei (John C. Reilly) basta-lhe o amor de casal mas ela não consegue aquietar aquela dor. Para cumprir o desejo violento de ser mãe, a Rainha convoca uma bruxa que afirma ser capaz de lhe dar o que pretende. No entanto, o preço por perverter as leis da natureza será elevado. Para uma vida nova terá de existir uma morte também.

“The Flea” – Um rei despreocupado (Toby Jones) deixa-se toldar pela obsessão com um animal de estimação invulgar: uma pulga. Esta cresce alimentada com todo o seu afecto e até sangue, ao mesmo tempo que negligencia Violet (Bebe Cave), a sua única filha. Após a morte do bicho o rei decide oferecer a mão de Violet em casamento a quem acertar num enigma. Rei e corte ficam chocados quando um ogre é o único a apresentar a solução correta e a pobre rapariga é forçada a casar com ele.

“The Two Old Women” – Em Strongcliff reside um rei (Vincent Cassel) que não consegue aplacar a sua luxúria constante. Um dia ouve uma voz angelical e fica obcecado por descobrir a quem pertence. A voz é de Dora (Hayley Carmichael) uma velha marcada pelas agruras de uma vida de trabalho duro e que tem por única companhia a tola irmã Imma (Shirley Henderson). Quando o rei bate à sua porta, Dora vê a oportunidade de ter por fim a possibilidade de conhecer o outro lado da sociedade, junto à elite, de paixão, riqueza e sem o esforço do quotidiano.

Se algo não faltou em “Tale of Tales” foi ambição. Cada um dos segmentos tem uma estória original, nunca antes adaptada ao cinema; em cada uma existem pelo menos um ou dois actores de peso e os cenários são tão fantásticos – com as ocasionais bestas míticas pelo meio –, que parecem saídos da fábrica de milhões, mais conhecida por Hollywood. A cinematografia e o design de produção, são o que melhor vende o filme. Os cenários são reconhecíveis, desde castelos italianos a bosques encantados e, ao mesmo tempo, estranhos o suficiente para enquadrar “Tale of Tales” no reino da fantasia. O seu calcanhar de Aquiles reside numa montagem trapalhona. É difícil destrinçar aquando da transição entre segmentos e a escolha por cortar certos segmentos em determinados locais também é duvidosa. Em alguns, a narrativa arrasta-se de tal modo que não fosse a beleza do que se vê no ecrã, seria caso para dormitar. Por outro, quando alguns dos segmentos aceleram o ritmo ou partem momentos de revelação cruciais passamos para a estória seguinte. No terceiro acto, quando todas as estórias são por fim interligadas, esse momento é o oposto de climático e é até desnecessário. Os segmentos ainda que não tivessem uma ligação narrativa tinham em comum o tema das obsessões tão fortes que consomem e dilaceram tudo no seu caminho pelo que a opção de reunir fisicamente os diversos reinos é redundante. Todas as personagens principais à excepção de Elias, em “The Queen” são profundamente imperfeitas ou têm graves falhas de carácter. A Rainha é profundamente egoísta e ciumenta. O rei que oferece a filha a um ogre é vaidoso e irresponsável. A própria princesa, com um destino tão triste, de início não é mais do que uma tolinha superficial. O rei de Strongcliff é incapaz de ver além da satisfação dos seus desejos primitivos. Dora não é mais do que o reflexo do rei, mas sob a perspectiva feminina, velha e pobre. E todos têm muito a perder só que não se apercebem até ser demasiado tarde. A vida tem lições de crueldade e contas a prestar com todos eles.
Em poucas obras é tão explícito o lado sombrio dos contos de fadas, como em “Tale of Tales” que nunca tenta ser subtil a esse respeito. Os temas são escuros e a imagética é opulenta e brutal, mesmo quando sob a forma de metáfora, brilhantemente enquadrados pela composição minimalista e desconcertante de Alexandre Desplat. A narrativa baseia-se em contos menos conhecidos de um compêndio na qual constavam os primórdios de uma “Cinderella” ou de uma “Bela Adormecida” que são agora recordados com a nostalgia de quem viu em pequenino os filmes da Disney. Mas ao investir em “The Queen”, “The Flea” ou “The Two Old Women” nunca surge esse perigo de contágio, podendo ser consideradas demasiado pessimistas ou até uma fraude, por quem viveu uma infância repleta de finais felizes. Três estrelas e meia.


Realização: Matteo Garrone
Argumento: Edoardo Albinati, Ugo Chiti, Matteo Garrone, Massimo Gaudioso e Giambattista Basile (contos)

Em "The Queen"
Salma Hayek como Rainha de Longtrellis
John C. Reilly como King of Longtrellis
Christian Lees como Elias, Príncipe de Longtrellis
Jonah Lees como Jonah

Em "The Flea"
Toby Jones como Rei de Highhills
Bebe Cave como Violet, Princesa de Highhills
Massimo Ceccherini como Artista de Circo
Alba Rohrwacher como Artista de Circo
Guillaume Delaunay como Ogre

Em "The two Old Women"
Vincent Cassel como Rei de Strongcliff
Shirley Henderson como Imma
Hayley Carmichael como Dora
Stacy Martin como jovem Dora

Estes e outros contos foram repescados e editados já em 2016 sob o nome "Tale of Tales",se quiserem conhecer um pouco mais sobre a mitologia de Giambattista Basile.

Próximo Filme: "The Happiness of the Katakuris" (Katakuri-ke no kôfuku, 2001)
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