segunda-feira, 27 de julho de 2020

Suores Frios - "Rosemary’s Baby, Ou O Cinema de Terror Como Exploração do Quotidiano" - por David Lourenço


O cinema de terror sempre foi, para mim, um campo fértil em ideias, no qual se consegue abordar qualquer assunto com criatividade. Não raras vezes, é um género subestimado e visto como alienante, pela violência ou pelo esoterismo de algumas histórias, mas, quando é bem feito, o cinema de terror pode ser um reflexo distorcido de aspetos da nossa sociedade, como um espalho convexo que realça certas formas da(s) realidade(s) que conhecemos. Um dos filmes que me tornou mais consciente das possibilidades do género foi Rosemary’s Baby.


Inserido numa trilogia não oficial de Roman Polanski (com apartamentos citadinos como cenário central da ação), a personagem principal passa por uma gravidez particularmente difícil; o filme utiliza o satanismo como metáfora dos poderes ocultos que controlam as mais diversas áreas (nunca me esqueço de como o marido tenta convencer Rosemary a abdicar do bebé recém-nascido para serem recompensados com oportunidades). Os sinais de perigo vêm do comportamento estranho dos vizinhos e da arquitetura hostil dos blocos residenciais, isto é, de uma apresentação subversiva de aspetos do nosso quotidiano, dos quais não desconfiamos ou não queremos desconfiar.

Aos poucos, Polanski questiona tudo na experiência da vida urbana, nomeadamente o lugar da mulher moderna. Rosemary é violada, a sua sanidade é posta em causa e, no fim, aceita que não consegue remar sozinha contra o estado das coisas e acaba a baloiçar o berço de um bebé que, afinal, é o filho do Diabo. Nem a maternidade é sagrada no mundo contemporâneo – aliás, o momento da conceção é a cena mais surreal de todo o filme.

Por tudo isto, continuo a adorar o cinema de terror, e, como este exemplo demonstra, qualquer filme, independentemente do género, pode ser uma referência cultural de relevo.

David Lourenço
O Narrador Subjectivo (2011 – 2017)
https://onarradorsubjectivo.blogspot.com/
Tarkovsky Wannabe (2017 – Presente)
https://www.instagram.com/tarkovskywannabe/

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Suores Frios – "A barata diz que tem (Pesadelo em El Street 4)" - por Miguel Ferreira


Curiosidade. É a curiosidade que melhor descreve e ensopa o meu cinema de cachopo. A magia do proibido sempre me inquietou. Tinha de saber, alguém tinha de me contar. E se por um lado os meus pais eram incansáveis timoneiros neste meu deslumbre, por outro tinham regras e linhas muito bem definidas. Um filme para maiores de 16, era um filme para maiores de 16. Mostra lá o BI. Pois. Nada feito. Foi assim que no alto dos meus dez anos sabia tudo o que tinha acontecido em “O Silêncio dos Inocentes”.  De trás para a frente, porque tinha ouvido a história, feito perguntas, uma e outra vez. Tive um filme, ali naquela narração paternal cheia de emoção, terror, energia, que só materializei anos mais tarde. Eram obras imaginadas, em constante crescimento, aguardando o dia em que, juntamente com outras borbulhas, passariam a ser uma realidade. Porém, estes embargos cinéfilos, eram por vezes contornados: em casa de compinchas as leis eram outras, as cassetes também. Um dos meus grandes amigos era doidinho por terror e não tinha as minhas restrições em relação à faixa etária: predador, omen, mosca um, mosca dois, ia tudo a eito. E foi numa dessas tardes, no início dos anos 90, que em casa dele passava o “Pesadelo em Elm Street 4”.


A cena. A cena é muito simples. Uma rapariga está a treinar. Deitada num daqueles bancos de ginásio, empurrando a barra para cima, segurando para baixo. Unhas pintadas, cabelo com volume de aulas de ginástica em VHS. A música flui, até que duas mãos prendem o movimento. Uma figura de chapéu, cara queimada e camisola às riscas empurra a barra para baixo até os braços da rapariga estalarem e rasgarem na zona dos cotovelos. Os antebraços ficam bambos e na ferida aberta começa a crescer algo. Na carne antiga surge uma nova. Enquanto se levanta e foge da criatura a nossa heroína vê os seus apêndices trocados por patas de inseto, enormes, desproporcionais. No desespero e na fuga o quarto forrado a jornais dá lugar a um estranho túnel, luzes mais amarelas, mais pestilentas. Entretanto escorrega e cai de cara numa poça amarela, numa cola que a agarra. Ela grita e tenta descolar o rosto, mas ao puxar a cabeça a pele fica. Sai como se fosse uma máscara. A transformação estava quase completa: tronco e cabeça de barata, pernas humanas. Um conjunto indefinido e disforme, preso num movimento mudo, num pedido de ajuda. Mudamos de perspetiva e vemos que ela se encontra numa pequena caixa, nas mãos daquele sinistro vilão, que a esmigalha com escárnio, libertando mais uma catrefada de viscosidades. É isto, e eu ali, de pé, ao lado do sofá, imóvel. Impressionado, arrepiado. A perceber que tinha acabado de ver algo, que não só nunca tinha visto, como nunca mais me ia largar.


Sonhos. Não deixa de ser irónico, um real pesadelo a amedrontar-me os carneirinhos. Um terror de outrem convertido num medo próprio. Ao longo dos anos fui fazendo os meus sustos e regando o que é hoje um dos meus géneros favoritos. Porém, só muito recentemente é que voltei a Elm Street. O original de Wes Craven (1984) apresentava-nos Freddy Krueger, uma figura deformada, vingativa e sádica, que vinha atrás de nós durante os sonhos. Deu origem a oito sequelas, incluindo um crossover com a saga “Sexta-Feira 13” e um remake (aborrecidíssimo) para as novas gerações. Vi os cinco primeiros, “O Novo Pesadelo de Freddy Krueger” e o “Never Sleep Again: The Elm Street Legacy”, excelente documentário que varre duma ponta a outra a mitologia. Chegar a “Pesadelo em Elm Street 4”, do meu querido Renny Harlin, e rever, agora com enquadramento, esta cena é como terminar um quadro. Uma última pincelada, a última linha antes de fechar e encostar o livro no colo. E apesar de achar tudo um pouco mais colorido, com deliciosas e míticas deixas de Krueger, o terror continua lá. O terror que hoje assumo como fundação: a claustrofobia, o crescendo, a construção, a carne. Os efeitos práticos, a marcar passo e a ditar todo um imaginário. Apesar de hoje o meu amigo já não gostar tanto do género. Apesar de a criatividade da morte se ter encostado a sagas como o “O Último Destino” ou “Saw”. Apesar, apesar, apesar, há algo que permanece. Nesta dicotomia do sonho e do real, da ficção e da vida. Debbie, a tal rapariga que acaba transformada numa barata, diz logo no início da cena a Freddy que não acredita nele. Às vezes precisamos de ser relembrados, que eles, por outro lado acreditam em nós, e que o nosso cinema está sempre lá, à nossa espera. Obrigado à Rita por este convite e por este regresso.

Miguel Ferreira
Blogue Créditos Finais http://creditos-finais.blogspot.com/
Podcast Nas Nalgas do Mandarim https://www.facebook.com/nalgasdomandarim/
e Videoclube do Sr. Joaquim https://www.facebook.com/SenhorJoaquim/

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Suores Frios - "Anticristo – ou de como a depressão cinéfila pode ser um filme", por Samuel Andrade


Quando me foi proposto invocar um filme que, de algum modo, me tivesse causado singular impressão física após a sua visualização, nunca imaginei que tal tarefa se apresentasse tão custosa. Talvez por não ser, desde os meus “verdes anos”, pessoa particularmente impressionável por imagens em movimento projectadas no grande ecrã (“it's only a movie”, tal como Hitchcock bem ajuizava), não fui capaz, durante imenso tempo, de nomear um título que – e citando o repto do “convite” – “contenha um momento que te fez tremer, ter pesadelos, ou de que não conseguiste parar de pensar durante os dias seguintes ou, se fores mais para o “forte” te desconcertou”.

Honesta e curiosamente, na minha vida, tais sensações pareceram provir apenas de experiências televisivas: a saber, V (mini-série de terror e ficção científica, exibida em meados da década de 80) e as primeiras temporadas de Twin Peaks. De resto, o horror cinematográfico raramente me suscitou um inesquecível assomo de “agitação física”; obras como O Exorcista (The Exorcist) ou História de Duas Irmãs (Janghwa, Hongryeon) estão, definitivamente, entre os meus eleitos do género, todavia são filmes que me perturbam mais pelo teor implícito que revelam do que pelo seu grafismo.

Mas, de facto, e na minha idade adulta, há um filme que toca a (má) reacção pós-visionamento: Anticristo (Antichrist), de Lars von Trier. Saído do Festival de Cannes 2009 envolto em acalorada polémica, e o fruto da luta do realizador contra uma depressão que quase o incapacitou de trabalhar, Anticristo é veículo de terror – psicológico e sobrenatural – apropriadamente sombrio e grotesco, e um alvo fácil de escândalo mediático pela misoginia intensa e violência gráfica que patenteia.

Desde a sua sequência inicial, percebemos que von Trier não poupa nada nem ninguém. Filmada em extremo slow motion, somos confrontados com o êxtase de uma cena de sexo entre o casal protagonista (Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, aqui somente designados como Ele e Ela), um momento de “distracção” durante o qual o bebé do casal cai, fatalmente, de uma janela aberta. Crivada pela mágoa, Ela sucumbe a profunda depressão, responsabilizando-se pela perda e encarando a calma do marido como insensibilidade. Ele, um terapeuta experiente, decide assumir o tratamento da esposa e, durante este processo, decide que a viagem a uma cabana isolada — apelidada de Éden — no meio da floresta ajudará à sua recuperação psicológica.

Assiste-se, de seguida, ao definitivo confronto físico e espiritual entre o casal que, rapidamente, evolui para a violência conjugal impiedosa, para um horror de índole realista e no sentido de uma “estética da agressão” que, na raia da pornografia, leva ao extremo a dicotomia sexo/morte.

A sua conclusão, de toada incerta e algo mística, apela sobremaneira à interpretação do espectador. Tenha sido por "o caos reinar", pelo subtexto(?) ou simplesmente pela violência, enfrentei um longo e profundo sentimento de mal estar: o filme não só me obrigou a desviar o olhar (lembram-se de não ser habitualmente impressionável?) perante “aquela” auto-mutilação da protagonista, como também me infundiu de uma depressão que se instalou nos dias seguintes, durante os quais, para o bem e para o mal, o filme simplesmente não me saiu do pensamento.


Samuel Andrade
filmSPOT (https://filmspot.pt/) & À Pala de Walsh (http://www.apaladewalsh.com)

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Suores Frios - Um Lobisomem Americano em Londres (An American Werewolf in London, John Landis, 1981) - por José Carlos Maltez


Muito do que é o meu gosto pelo cinema foi alimentado pelo facto de haver a 50 metros da casa dos meus pais um daqueles antigos cineteatros que animavam os arredores de Lisboa, e onde todos os filmes mais bem-sucedidos chegavam, com o devido atraso que podia ser de semanas ou até meses, como era comum no início dos anos 80, antes da explosão do fenómeno videoclubístico.

O cinema era tão perto que eu (no início acompanhado, nas sessões de domingo de manhã ou sábado à tarde), atingida a avançada idade de 7 anos, já ia sozinho. Era só arranjar uma ou duas moedinhas para o bilhete, e às vezes nem era preciso escolher o filme, era o que lá estivesse: animação, aventura, acção, comédia. Até que, já quase adulto, com os meus 10 ou 11 anos, comecei também a ir à noite, para filmes que não eram só para a criançada.

Com essa idade, o terror não era um género que eu consumisse, mas a ideia de que pode haver emoções tão fortes que nos fazem saltar da cadeira era algo que tinha de ser testado. Foi isso que fiz, acompanhado de um primo ainda mais novo que eu, quando vi que "Um Lobisomem Americano em Londres" de John Landis tinha acabado de chegar. O filme era vendido como um produto bem-disposto, de efeitos especiais revolucionários, portanto, que hesitação havia?

Fomos à sessão das 21:30, e só ao comprar os bilhetes vimos nos cartazes a nota “maiores de 16 anos”. Entreolhámo-nos receosos, e dirigimo-nos ao porteiro como que tentando esconder-nos um atrás do outro, mas ele nem piscou. E entrámos triunfantes.

Adorámos o filme, é certo – para quem não sabe: é a história de dois jovens americanos a viajar de mochila às costas pelo interior de Inglaterra, que são atacados por algo numa noite de lua cheia, um morre e o outro fica ferido, passando a receber visitas do amigo morto que lhe diz que se irá transformar num lobisomem, coisa que realmente virá a acontecer. Tive de desviar o olhar nalgumas cenas, como as visitas ao hospital do amigo em decomposição; os pesadelos violentos e sangrentos; e… as penosas e minuciosas metamorfoses. Nunca tinha visto nada assim, e as mazelas não ficaram por aí. Como conversámos no dia seguinte, nenhum de nós pregou olho, e vimos bicharada peluda e muito dentada a aparecer-nos pelos quartos a noite toda.

Tal nunca me demoveu, antes pelo contrário. O terror, pela capacidade de gerar este tipo de emoções, e pelo seu carácter tão fantasista que é talvez o género cinematográfico que mais se aproxima dos antigos contos de fadas, tornou-se sempre uma refeição presente na minha dieta de cinéfilo.
Os sustos vão aparecendo aqui e ali, e lembro-me de ter ficado incomodado quando, por essa altura, vi, na TV,  "The Haunting" de Robert Wise, com o qual percebi o poder do que não se mostra. Ver, poucos anos mais tarde, "O Exorcista" (com uma irmã pequenina a dormir no quarto ao lado), ou o "Silêncio dos Inocentes", com aquele papel impressionante de Anthony Hopkins, também deixou marca. Mas não há susto como o primeiro, e o filme de John Landis ficou para sempre no meu panteão.

Recentemente, a propósito de um ciclo para o meu blogue "A Janela Encantada", revi o filme. Obviamente, desta vez não me tirou o sono, e não tive de fechar os olhos em nenhuma das cenas. Mas, esforçando-me para voltar a vê-lo com os meus 12 anos, pude perceber que o filme ainda se aguenta muito bem. Já com outro olhar pude reparar ainda no modo como ele presta homenagem ao ambiente que se tornou icónico nos filmes clássicos da Hammer, os quais foram os responsáveis pelo nascimento do meu blogue, e se calhar razão pela qual estou aqui a escrever. Há círculos muito curiosos.

José Carlos Maltez
Autor do blogue A Janela Encantada
https://ajanelaencantada.wordpress.com/
Colaborador e editor-adjunto da revista Take Cinema Magazine
www.take.com.pt
Co-autor do podcast Universos Paralelos
www.segundotake.com/universos-paralelos
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