segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte cinco

Aqui ficam o quinto e o último dia de festival pois são apenas três filmes. Aproveito para confirmar as minha expectativas iniciais: a Edição de 2021 revelou-se uma das melhores dos últimos anos. Venha daí 2022!

Nota: Estava bastante curiosa acerca de "The Night House" dado advir da lente de David Bruckner ("Southbound", "The Ritual"). Não me foi possível participar na sessão. Por isso, quedo-me por um "Mad God" que, UAU! Mas comecemos do princípio.

Dia V

Gaia

Salvem a mãe terra!

Como já tinha dito aqui, é estranho assistir a "Gaia" com um dia de diferença de "In the Earth". Os
filmes têm demasiadas similitudes. Os eventos decorrem em exclusivo na floresta. Esta parece ganhar vida à própria à medida que o elenco desbrava caminho pela natureza. Os protagonistas sofrem incidentes semelhantes na sua incursão natural pela natureza. Existe uma mensagem ecológica muito forte em alguns personagens. A ideia da natureza como um organismo com uma mente consciente. Ambos os cineastas revelam um fascínio por visões caleidoscópicos e processos químicos e biológicos. Quem ganha a aposta? Uma dica: não é o realizador mais conhecido.

Gabi e Winston são dois guardas florestais que se separam na floresta quando o seu drone cai na floresta. Ferida por meio de uma armadilha, quando ia recuperar o aparelho, Gabi acaba por ser acolhida por Barend e Stefan, uma dupla de homens que vivem em estado quase natural, desligados da vida moderna e dos seus companheiros de espécie. Winston, encontra a pior parte da floresta.

A experiência de "Gaia" acaba por ser muito mais terrena que "In the Earth", abordando temas como o luto, a desconexão entre pessoas, o consumismo desenfreado, o mito do bom selvagem o egoísmo humano ou o livre arbítrio. A vida em sociedade é complicada? Dá vontade de fugir? É possível. "Gaia" é uma trip no bom sentido. As sequências de beleza fúngica (acreditem que nunca pensei referir beleza e cogumelos na mesma frase) a surgir pelos orifícios mais estranhos e a multiplicar-se são estarrecedoras. Queria mais disto mas sem as inúmeras cenas em que a protagonista acorda de um sonho. Uma vez, duas vezes, ok. À terceira já começamos a revirar os olhos. "Gaia" exibe uma criatura mas é tão paralela ao que de mais há para apreciar que chamar-lhe um filme de monstros será só redutor. O body horror está mais próximo de um "Anihilation" na imagética e na interpretação do seu significado que um "Saw". Semelhante a outros filmes ou não "Gaia" apresenta uma visão suficientemente singular. Se vos oferecerem destes cogumelos aceitem.

The Deep House

O prazer reside no conceito.

Eu nem quero imaginar como foi o pitch deste filme. "Tipo: é uma casa assombrada... debaixo de
água". Só consigo imaginar os produtores de pé a bater palmas e a perguntar quando começam as filmagens. É que nem precisaram de uma sinopse para me convencer a assistir ao filme. As casas assombradas são, regra geral um conceito cansado. Portas que rangem, barulhos que vêm do escuro... É uma fórmula e como todas as fórmulas, passado algum tempo, cansa. Do que este subgénero necessita é de inovação. Que ninguém me venha dizer que uma casa assombrada debaixo de água não é inovador porque mostra ignorância quanto ao género de terror e quanto ao conceito de inovação. Juntar a tensão própria do sobrenatural ao terror claustrofóbico da submersão é um golpe de génio e mais, pode ser o mote para um novo subgénero de sucesso.

Um casal passeia pelo sul de França filmando-se a entrar em casas assombradas para ganhar  dinheiro com as visualizações no seu canal de youtube. Ele é um viciado na adrenalina. Ela, mais medrosa acompanha o namorado nas aventuras por amor. É por demais claro em diversas oportunidades para voltar para trás que ela preferia ter umas férias como gente normal. Quando o casal mergulha na casa dos Montagnac revelam-se segredos para os quais nunca podiam estar preparados.

"The Deep House" tem certamente alguns problemas. Custa-me entender como é que o casal, mesmo aceitando a indicação de um estranho com ar muito suspeito, não sendo perito em mergulho, aceita avançar por águas desconhecidas sem qualquer mapa submarino ou ter um plano B de socorro caso a experiência corra mal. E é certo que corre MUITO MAL. Desde os instantes iniciais a protagonista demonstra uma fragilidade que a irá acompanhar e à audiência como um lembrete de tudo quanto pode correr mal debaixo de água e não são necessariamente fantasmas. Estes são aterradores mais que não seja pelo visão pouco natural através da água turva. Mas o maior susto e que faria a audiência da sala Manoel de Oliveira saltar das cadeiras foi provocado por um peixe. Ainda assim, as minhas palmas para a cena reminiscente do "Jaws" e que resultou. Já o acompanhamento do casal enquanto atravessam as divisões da casa são o arder em lume brando com a excitação acrescida do perigo real de falta de ar. Altamente recomendado para fãs de terror em busca de emoções novas.

"Mad God"

Do repugnante se fez um mundo.

Afirmo sem pudor ou hesitação que "Mad God"  é a obra mais interessante, mais criativa e visualmente impressionante da edição do MOTELx de 2021. Nada me podia preparar para esta obra de Phil Tippett.
Nada. Pensar que "Mad God" é um trabalho de avanços e recuos. Que demorou 30 anos a ser completado e precisou de apoio através de crowdfunding. Tantos anos depois demonstrou ter amplos truques na manga. É surpreendente. Mas também aviso, se os filmes de extrema brutalidade não são a vossa preferência não é "Mad God" que vos vai fazer mudar de ideias. Quando muito só vai repelir e aumentar o vosso asco ao estilo. Eu estive naquela sala cheia (dentro das normas possíveis em tempos de pandemia) e assisti a algumas desistências.

"Mad God" não choca pelo prazer de chocar, como tenta fazer um Tom Six ou "A Serbian Film". É sobre o inferno na terra após a entidade superior considerar a humanidade além salvamento. O Homem causou o inferno na terra que provocou a sua extinção. O que sobra é não natural, primário, feio, nojento, brutal e Phil Tippett não se coíbe de nos mostrar tudo isso em toda a sua fealdade, em stop motion. Ao invés de fugir o foco é tudo o que é horrendo como se estivessemos a ver o quadro "Jardim das delícias terrenas" do Hieronymus Bosch com uma lupa. Da destruição surge a criação, como Tippett não de cansa de mostrar sobre a forma de metáfora. Detesto a expressão "cinema de autor". Todas as obras têm uma autoria. No entanto, se quiserem saber o que é uma visão singular, vejam "Mad God". Sugestão? Vão de estômago vazio.

domingo, 12 de setembro de 2021

Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte quatro

O quarto dia de festival, foi aquele em que a mensagem foi o meio e foi o fim. Também se revelou um dia inferior às expectativas.

Dia IV

Amusement Park

A mensagem de Romero

Esqueçam tudo o resto que pensam que sabem sobre George Romero e foquem-se apenas no seguinte: era um realizador altamente consciente da sociedade em que estava inserido. O racismo, o consumismo desenfreado, humanos como meros veículos de pulsões primitivas... nada lhe escapava. Será para sempre conhecido pelos filmes de zombies. Pensar neles como horror gratuito é no mínimo redutor. Por isso, quando este documentário perdido, foi encontrado e restaurado pela Fundação George Romero, instituída depois da sua morte, não assistir não era uma opção. Tudo à volta de "Amusement Park" é intrigante. Foi criado para uma campanha de sensibilização de uma Sociedade de Serviços Luterana do oeste da Pensylvannia com vista a dar visibilidade para o abandono e tratamento negligente dos cidadãos idosos. Chegou a ser lançado, sendo rapidamente esquecido e guardado. Só em 2017 foi encontrada a única cópia existente que passou por um trabalho de restauração. A sinopse? Um velhote simpático tenta aproveitar um momento de lazer num parque de diversões. À medida que o tempo passa, este vai-se tornando cada vez mais infernal e começa a testar o seu espírito.

"The Amusement Park" nada tem de divertido. É uma visão infernal da inevitabilidade do envelhecimento com tudo que de mau tem associado: a invisibilidade, a descrença, o paternalismo, a negligência e até asco. O velhote apenas quer divertir-se dentro das suas limitações e a humanidade egoísta não se pode dar ao trabalho de uma palavra de compaixão. O único momento de alívio advém na forma de criança mas até este é rapidamente posto de lado, devido aos adultos à sua volta. O filme é cansativo na exposição da sua mensagem, bombardeando continuamente os nossos sentidos. Não é uma experiência cinéfila agradável. Se a metáfora é óbvia, não parece existir uma mensagem de esperança. Saímos esgotados, vazios e pessimistas quando ao envelhecimento. Brilhante na mensagem, parco na execução. I was not amused.

In the Earth

Visões cósmicas ecológicas

É estranho falar deste filme um dia após assistir a "Gaia", concorrente direto na exposição dos mesmos temas. E no entanto, com todas as similitudes são muito diferentes.

Este "In the Earth" é Ben Wheatley no seu mais brutal. Percebo agora que ele está à vontade em qualquer cenário. Seja numa garagem com armas de fogo ou na clareira de uma floresta com gadgets tecnológicos, ele vai partir-nos a cabeça com o seu suspense e forçar-nos a sentir cada momento dos seus heróis torturados.

Joel Fry interpreta Martin um cientista que envereda por uma floresta com a sua guia Alma, para encontrar a Dra. Olivia Wendel que está a estudar aquele solo fértil em busca de uma solução para a humanidade na natureza. A viagem começa a correr mal quase de imediato. São atacados e despojados de mantimentos por desconhecidos e depois Martin é ferido e deixado a coxear descalço pela floresta. A aventura piora quando ficam à mercê de Zach, um homem há demasiado tempo na floresta e que venera uma entidade desconhecida. Para ele Martin e Alma são meros veículos. Um meio para atingir um fim misterioso. A Dra. Wendel não parece muito melhor. Desconectada da realidade. Louca? Desde cedo somos avisados que a floresta tem um efeito estranho nas pessoas. Será a loucura do isolamento? Algum processo químico nos fungos? A paranoia pós-pandémica?

O par de protagonistas é sujeito a tortura por via humana e dos equipamentos colocados na floresta que provocam explosões de som, visões caleidoscópicas e flashes de luz encadeante. Estes, em particular são também capazes de desorientar e provocar respostas físicas na audiência. A organização do festival devia ter tido o cuidado de avisar o público para a natureza das imagens, designadamente, de fotossensibilidade. Tenho ainda a impressão de já ter visto visões caleidoscópicas mais interessantes no passado. Se gostam de rótulos, "In the earth" pode encontrar-se alegremente nos subgéneros de eco e folk horror com o ocasional gore. Hoje em dia mesmo filmes mais contidos já apresentam o seu q.b. de gore. Num filme de Wheatley, tal não surpreende. “In the Earth” provaria ser inferior às expectativas mas ainda assim consistente o suficiente para fazer avançar o género eco-horror, o qual, suspeito, num contexto de alterações climáticas ainda se vai multiplicar e democratizar nos próximos anos.


Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte cinco

sábado, 11 de setembro de 2021

Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte três

 Um dia marcado pela boa disposição.

Dia III

Alien on Stage

On stage everyone can make you laugh

Se não estivesse familiarizada com o fenómeno "The Room", quase acharia estranho o conceito de um grupo de teatro amador composto por motoristas de autocarro de uma pequena vila inglesa, levar uma adaptação séria de "Alien" ao palco. 

Depois de dar vida a pantominas divertidas em natais anteriores para angariar fundos para caridade, a decisão do grupo de criar uma peça inspirada no icónico filme de Ridley Scott confundiu muita gente.

A encenação revelou-se um fracasso. Passaram de natais de casa cheia para apenas 20 pessoas. Uma adaptação séria de Alien não equivalia às habituais comédias de Natal. Agora, podia dizer que a estória ficou por aqui mas tal não seria verdade. 

No meio do escasso público encontravam-se duas londrinas que encontraram um flyer sobre a peça que as intrigou tanto que as levou a conduzir três horas para assistir à peça. O resultado não podia ser mais feliz: elas fizeram da sua missão levar a peça aos palcos de Londres. O melhor? Conseguiram.

O documentário “Alien on Stage” é o caminho desde os ensaios penosos e de imaginação fértil amadora até aos palcos do West End. É a estória da Cinderella, se esta conduzisse um autocarro. 

A candura daquele grupo de pessoas ordinárias, que se vêm surpreendidas pelo amor à pequena peça que fizeram com alegria e ingenuidade fazem deste documentário o momento feel good do festival MOTELx de 2021.

O valor de "Alien on Stage" não reside na componente técnica mas nas emoções que provoca. Como documentário não existem muitas ideias. É quase amador. De facto Lucy Harvey e Danielle Kummer têm pouca experiência como uma breve passagem pelo IMDB vos poderá demonstrar. Sobra um amor incomensurável pelo material. Amam o filme “Alien” e amam a dedicação daquele grupo de pessoas, tratando-as com o máximo de respeito. Se aplicarem a mesma paixão aos próximos projetos e adquirirem mais experiência talvez nos possam vir surpreender.

“Alien on Stage” não é sobre actores à procura do estrelato. É sobre pessoas normais, com trabalhos normais que fazem o melhor que podem com os parcos meios de que dispõem. Nas horas livres dos trabalhos a tempo inteiro decoram textos, montam cenários e arranjam soluções criativas para encenar uma peça muito difícil e nada óbvia de levar ao palco. Um chestburster de espuma a fazer a sua estreia no palco ao vivo? Brilhante. A despeito de alguns momentos de autoconsciência como um encenador que se recusa a perder a paciência enquanto é filmado ou uma das actrizes a censurar os palavrões que lhe pesam na alma, é nas interações reais entre o grupo amador que o documentário ganha vida. Impossível assistir e não ficar bem disposto.


Sweetie you Won’t Believe it

A comédia física, música cazaque e a descrença entram num bar e…

Já posso riscar da minha bucket list ter assistido a um filme do Cazaquistão e posso confirmar que foi a surpresa positiva do 3º dia.

Confirmo que “Sweetie you Won’t Believe it”, mantém a tendência de comédias de terror inesperadas que vêm de mansinho e roubam o coração da audiência depois de “One Cut of the Dead” ou “Extra ordinary”. Ri-me tanto com aquele aquele último que quase tive contracções. #truestory

“Sweetie you Won’t believe it” segue a alegre tradição da comédia de enganos.

Farto de Zhanna, a sua mulher grávida ultra exigente, Dastan só quer um bocadinho para si, antes de o bebé nascer. Sem sequer saber pescar marca uma fugida para ir pescar com dois amigos, longe das preocupações do quotidiano. Quer o acaso que assistam a um homem a ser assassinado por causa de um negócio que correu mal e põem-se em fuga do bando de malfeitores pelo meio da mata. Pelo caminho cruzam-se com um serial killer temível, um pai e uma filha muito estranhos (a sério, o que é que aquela gente põe na água?) e a realização de que Zhanna entrou em trabalho de parto. Será que conseguem fugir dos bandidos? Será que conseguem chegar antes que a criança nasça? E se chegarem a tempo, será que a mulher não irá matar, ela própria Dastan, por ter dado de frosques?

O filme é acompanhado por uma excelente banda-sonora, um mix de folk com eletrónico cazaque que admito já, não me importava de ouvir de novo. Faz recordar as comédias tailandesas e outros filmes mais mainstream como “Tucker & Dale vs Evil”, sem passar por parente pobre. Em particular a sequência de eventos que desembocam numa autêntica bola de neve são um pequeno toque de génio. Digamos que a culpa de tudo quanto sucede no filme pode ser atribuída à mulher grávida. 

Não é isento de erros, incluindo alguns subenredos que podiam ser melhor explorados: Dastan tem as finanças numa miséria. Nos instantes iniciais é focada uma reportagem sobre o desaparecimento de três mulheres. É mostrado um álbum que demonstra um acontecimento vital na vida do serial killer. O par pai e filha é tão peculiar que mereciam mais minutos só para eles. Estas e muitas outras questões ficam por explorar e isto leva-me a uma sugestão: teria sido muito interessante desdobrar este “Sweetie” numa mini série, acompanhando cada grupo de personagens e as suas estórias já que são estas que dão cor ao guião. Não faço ideia como se irá materializar a distribuição internacional deste filme mas estejam atentos. Vale a pena o esforço.


Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte quatro


sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte dois

O segundo dia festival manteve o padrão do dia de abertura, com duas opções que não podiam ser mais diferentes.

Dia II

Post Mortem

O primeiro filme de horror húngaro

O marketing apresentou ostensivamente "Post Mortem" como a primeira longa-metragem de terror desse país.

Não sei se essa afirmação está correta, mas se for verdadeira, é uma estreia que augura um futuro risonho para o género neste país.

"Post Mortem" acompanha Thomas, um ex-soldado que teve uma experiência de quase morte durante a I Grande Guerra e agora ganha a vida integrando uma caravana itinerante onde fotografa os mortos, como forma de dar uma última lembrança às suas famílias. É lá que conhece Anna uma menina que já tinha visto antes: na visão que teve quando quase morreu. Ela também lhe desperta a curiosidade para a sua aldeia, plena de cadáveres não enterrados, dado o solo estar congelado.

"Post Mortem" encontra algumas parecenças no cinema asiático e no horror mainstream como um "Insidious" mas mantém uma identidade própria, distinta.

Aborda tópicos tão dispares tematicamente e tão próximos historicamente como a fotografia de mortos, as feiras de freaks, a I Guerra Mundial ou a Gripe Espanhola. Qualquer um deles seria merecedor do seu próprio filme. No entanto, funcionam coesos neste "Post Mortem".

Thomas queda-se numa aldeia como tantas outras por um mundo devastado pela Guerra. As pessoas estão traumatizadas. Já quase não há homens. Há mulheres, crianças e velhos. E estes foram os que conseguiram sobreviver à gripe espanhola.

A cinematografia esplêndida faz um trabalho delicado de demonstrar pessoas afetadas de modo profundo pelos eventos já mencionados e de enveredar numa jornada sobrenatural, sem fazer pouco dos seus traumas reais. Onde se perde é na relação entre Thomas e Anna, natural nos inícios do século XX, porém perturbadora à luz da época atual. Desculpem lá qualquer coisinha se me faz confusão, ainda por cima num país onde se pretende proibir a homossexualidade por esta supostamente conduzir à pedofilia. A nível técnico, de referir também os efeitos gerados por computador que não são perfeitos mas também não comprometem. Vou estar muito atenta ao cinema húngaro e vocês também devem estar.

After Blue

Pesadelo psicadélico soft core

Por onde começar? O trailer fazia adivinhar uma película diferente com alguma inspiração de um "Mad Max" com a tolice psicadélica de "Flash Gordon" e os filmes de série B e sexploitation dos anos 80. Contudo, NADA me podia preparar para o que iria ver.

Num futuro distópico, os humanos habitam um novo planeta, intitulado "After Blue", após a terra ser destruída. A colonização não correu bem na totalidade. Os homens não se conseguiram adaptar ao novo ambiente e acabaram por morrer, consumidos por pêlos que lhes cresceram nos órgãos (EW). After Blue é então habitado por mulheres, que procuram dar seguimento à espécie através de inseminação artificial e de uma sociedade justa e pacifista.

Roxy, mais conhecida por Toxic, pelas suas amigas encontra numa praia uma mulher enterrada até ao pescoço na areia, deixada para morrer afogada. Apesar, das advertências das amigas, ela desenterra a mulher, maia conhecida por Kate Bush, que foge não sem antes matar as suas amigas. Julgada pelas outras mulheres Roxy e a sua mãe cabeleireira, são obrigadas a perseguir e matar a assassina se quiserem ser reintegradas na sociedade. O que se segue é a sua jornada pelo planeta exótico. A ação é intercalada com exposição através de uma conversa em jeito confessional em que Roxy é questionada acerca do seu comportamento e desejos mais íntimos.

Chamaram-lhe um "acid sci fi erotic western". Infelizmente, os rótulos atribuídos se podem fazer aparentar "After Blue" fascinante também conseguem transmitir como este filme é uma mescla incoerente. É lindo de ver? Por vezes é. A visão de Bertrand Mandico não conhece igual. Dou-lhe isso. Gostava de ver mais no futuro? Sim. Precisava de mais estória? Também. Entre o despertar sexual de Roxy e até da mãe Zora e a procura por um espírito comunitário inexistente, não há motivo para me importar seja com quem for. São tudo personagens egoístas, agarradas às suas pulsões de sensualidade ou violência, que querem viver nos seus termos, por mais caprichosos que possam ser. Bertrand Mandico usa e abusa da sexualidade. Entre as inúmeras sessões de masturbação ou interações mais ou menos sensuais, nenhuma é em demasia para a sua objetiva. A sua visão está mais próxima da obsessão do sexo pelo sexo, desde o explícito ao sugerido -  um terceiro olho acima da vagina, criaturas cuja morfologia faz lembrar uma vagina ou a quantidade de vezes que a protagonista se acaricia -, até vomitarmos a imagética pelos olhos, que em explorar a sensualidade feminina. E são duas horas disto gente. Ok. Já percebemos. São seres livres, à descoberta que desejam pertencer a um grupo. A esse propósito, informo que não vou integrar o grupo de fãs de “After Blue”.

Próximo: Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte três


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte um



Em modo de retorno pleno ao MOTELX em modo de fingimento que não existiu uma pandemia punitiva pelo meio e, com a expectativa de que a edição de 2021, se materialize como uma das melhores de sempre. Sim, leram aqui. É porventura um dos melhores cartazes dos últimos 5 anos. O veredito será dado no fim do Festival. Vamos a jogo!

Dia I

"The Green Knight"

O Rei quer ouvir um conto de bravura.

A sessão de abertura abriu com o onírico “The Green Knight”, uma longa de David Lowery baseada nas lendas arturianas.

Numa primeira impressão “The Green Knight” não deixa margem para dúvidas: é um filme da A24. No entanto, tem uma identidade muito própria. 

Green-Knight-Dev-Patel-Garwain
Dev Patel interpreta o jovem Garwain, sobrinho ocioso e inconstante do Rei. Quer muito impressionar o tio, mas o nível de esforço não acompanha o desejo. Numa noite de Natal surge um cavaleiro verde, uma besta mística que desafia a Távola Redonda para um jogo. Quem aceitar o seu desafio poderá desferir-lhe um golpe mas atenção, daí por um ano, deverá cavalgar ao seu encontro e deixar o Cavaleiro Verde devolver o ferimento. Garwain aceita o desafio sem refletir sobre as consequências e corta-lhe a cabeça. O Cavaleiro Verde sobrevive e larga uma gargalhada triunfal. Daí por um ano a cabeça de Garwain irá voar.

É um equívoco pensar que se irão seguir contos heroicos de capa e espada, duelos sangrentos, a morte de dragões ou o resgate de donzelas escondidas em castelos remotos.

“The Green Knight” é muito mais sobre a natureza que nos rodeia e humana que os caprichos de cavaleiros em demandas fúteis.

Inclui uma Alicia Vikander hipnotizante, numa linha ténue entre anjo e bruxa, entre o real e ilusão, por vezes uma espécie de consciência por outras, como um desafio àquilo que Garwain toma como certo. Dev Patel é o cavaleiro atormentado por uma escolha irrefletida, querendo encontrar o seu lugar no mundo, ainda que a sua expectativa de vida possa ser bastante inferior ao que desejava. Com pouco diálogo, a sua face é um espelho permanente de tudo o que não se encontra no galante cavaleiro dos contos: indecisão, temor ou confusão. Se ainda têm dúvidas de que Patel é um excelente actor, permitam-se ver este filme.

“The Green Knight” é contemplativo, é belo, é simbólico. A natureza é luxuriante. Por vezes é rica, é a vida, como o nascer de uma nação. Por outros é imperdoável, brutal, como o apodrecer de corpos enviados para uma guerra. A verdade encontra-se algures entre a lenda e a versão não linear que nos é contada por Lowery. Mas, oh que linda, é!


"The Samejima Incident"


Tudo o que está errado com o atual cinema japonês.

Recordam-se dos tempos áureos do cinema japonês em que em meio mundo, incluindo Hollywood, se faziam remakes de tudo o que este lançasse? Eu também não.

Nana reúne-se com o seu grupo de amigos numa reunião em formato virtual dado o contexto de pandemia. A dada altura surgem imagens perturbadoras do cadáver de uma das suas amigas e vêem o seu namorado a ser arrastado por uma força estranha. De súbito, todos se tornam prisioneiros nas suas próprias casas e começam a ser acossados por uma força sobrenatural. Entretanto, um deles acaba por confessar que num desafio, dirigiram-se a uma casa onde teria ocorrido um assassinato bárbaro e que terá recaído sobre eles uma maldição… Será que conseguem quebrar a maldição antes que seja tarde de mais?

Como já perceberam “The Samejima Incident” envolve uma maldição (estão chocados eu sei) que está associada a uma lenda urbana (ainda mais chocante). O mais curioso de “The Samejima Incident” é que os argumentista/realizador deve ser fã do David Fincher. Se não, vejamos, “The first rule of fight club is you do not talk about fight club”, ora, segundo a maldição se os personagens mencionarem o incidente, a morte irá recair sobre eles. Oops. Depois, a dada altura e sem contexto, surgem os 7 pecados mortais conectados ao incidente chocante. O que é isto? O cinema japonês a copiar o ocidental?

Se viram o britânico “Host” (2020), filme-sensação da pandemia filmado quase totalmente através do ZOOM, “The Samejima Incident” é mais do mesmo, com uma concretização inferior.

O cinema japonês precisa de uma séria reinvenção. Não existe instrospecção sobre o conteúdo que é apresentado. São sequências inteiras de repetição de cenas antes icónicas, que mancham o legado dos filmes que homenageiam e banalizam e ridicularizam os novos filmes. Em 2020, já não faz sentido espreitar em armários para ver de onde provém o barulho. E muito menos que miúdos nascidos no novo milénio e conheçam os Ringu e “The Grudge” desta vida, continuem a congelar de terror. Seria interessante os novos talentos do cinema japonês, espreitar além-mar, para a Coreia do Sul e aprender com uma indústria muito mais criativa e consolidada. Orçamentos limitados não podem ser desculpa para a falta de ideias.

Costuma-me horrores dizer isto mas, se é para o MOTELX continuar a assegurar que o terror japonês contemporâneo tem presença no seu programa, mais vale não ter nenhum filme deste país.

Próximo: Notas de um Festival de Terror, Edição de 2021 – parte dois

terça-feira, 13 de julho de 2021

"In Fabric" (2018)

Uma besta estranha.

Filmes sobre objectos assombrados são sempre uma provocação. Além da iminente e fulcral suspensão da crença, há ainda toda uma abordagem que é uma incógnita. Será que os argumentistas optaram por prosseguir com o absurdo puro ou, espera-nos um registo mais poético, quiçá onírico? A oferta é variada e podemos encontrá-la em muitos períodos do cinema: “Christine” (1983), “Trucks” (1997), “The Red Shoes” (2005), “Fridge” (2012), filmes de bonecas assombradas, então, encontram-se a rodos no cinema do sudeste asiático, tal como os slashers nos anos 80.

“In Fabric” enquadra-se nesse subgénero, mas as particularidades não se quedam por aí. É um pseudo-giallo produzido em plano século XXI, por Peter Strickland, que é mais conhecido pelo seu “Duke of Burgundy”, de 2014. Este é um bom ponto de partida para compreender os temas de “In Fabric” e, por que é que este, não é apenas um filme sobre um objeto assombrado. Strickland renova o interesse em contar histórias sobre as relações humanas, com ênfase na sensualidade, mesmo estas tomem um caminho mais negro ou, de como o desejo pode fazer os amantes tomar atitudes inesperadas ou mais bizarras. Assim, não é surpreendente desenhar-se uma teia de morte e erotismo em torno de um vestido vermelho. 

Marianne Jean-Baptiste interpreta Sheila, uma senhora de meia-idade respeitável mas solitária, que tenta ultrapassar o divórcio e um filho adulto cada vez mais desafiante. O ex-marido já mostrou ter ultrapassado o casamento, arranjando um nova namorada e o filho, nem sequer tenta ser discreto nas manifestações de afecto, na sua relação ardente com uma mulher mais velha, Gwen (Gwendoline Christie). A solidão arrasta, por fim, Sheila para os saldos e os anúncios românticos dos classificados.  É no retalho, que uma estranha e enigmática Miss Luckmoore, a convence de que o vestido vermelho trará a admiração e afecto por que Sheila tanto anseia. Seguem-se episódios, de encontros falhados e de sucesso, de tensão no outro e acidentes estranhos. Tudo isto, conectado ao estranho vestido vermelho.
Não posso garantir, com total segurança, que não existam outros giallos sobre objetos assombrados mas, na mão de Strickland, a proposta é, sem dúvida única. As analogias a “Suspiria” suscitadas por essa internet fora não são descabidas.
A selecção musical do colectivo Cavern of Anti-Matter, dá-lhe a singularidade que uns Goblin trouxeram ao anteriormente mencionado filme de bruxas. "Suspiria" estará sempre indelévelmente ligado ao tema principal. A bizarra Miss Luckmoore podia ter sido retirada do filme de Argento. Sem qualquer alteração, encaixava que nem uma luva no imaginário desse realizador. O comportamento e aparência desta personagem, em conjunto com o das outras colegas de loja, parecem sugerir a existência de um convénio de bruxas. Existe um momento, o qual não vou desvendar para manter o interesse, entre Luckmoore, o dono da loja e um manequim, que é tão peculiar, que não posso deixar de me perguntar, dado que não acrescenta nada à história, se não foi uma ideia posterior que o realizador/argumentista, certamente insistiu para colocar no filme, somente pela imagética. E, em simultâneo, não consigo imaginá-la num outro filme.
Mas a mensagem porventura mais ainteressante é a crítica ao consumo que nos destrói, mais do que um vestido assassino. Strickland não se coíbe de inserir alguns anúncios televisivos da loja, estridentes e hipnóticos em igual medida, que funcionam como mensagens subliminares para a compra. Uma homenagem a “They Live” (1988), não é descabida.
O realizador demonstra ainda ser amigável ao universo LGBTQI, devotando-lhe, se não, as estórias mais desenvolvidas, pelo menos, uns dos momentos mais interessantes de todo o filme, em particular, os chefes de Sheila, Stash e Clive, demasiado, entusiásticos acerca de narrativas da vida pessoal dos funcionários e de clientes.
“In Fabric” não é isento de críticas. Por vezes, transmite uma sensação de falta de auto-controle de quem está atrás da câmara. O realizador não sabe quando parar. Deixa a câmara rolar, muito depois de já ter demonstrado o seu objetivo. Isso, alonga uma estória que não precisava de duas horas para ser contada e anda em círculos.
O filme assenta, por fim, em três linhas principais: o slasher (que não o é), o erotismo ligado a pulsões de morte e a crítica social, resultando, como comecei por referir, numa estranha besta. Três estrelas e meia.


Realização: Peter Strickland
Argumento: Peter Strickland
Elenco:
Marianne Jean-Baptiste como Sheila
Fatma Mohamed como Miss Luckmoore
Jaygann Ayeh como Vince
Gwendoline Christie como Gwen
Leo Bill como Reg Speaks
Hayley Squires como Babs
Julian Barratt como Stash
Steve Oram como Clive

sábado, 9 de janeiro de 2021

Top 10 Filmes 2020 - Parte II

A primeira parte pode ser consultada aqui

6) O dia em que as pessoas começaram a Explodir!

“Spontaneous”

E se um dia os teus colegas de turma começassem, de súbito, a explodir? Qual seria a tua reacção? A resposta óbvia é fazer o que Mara (Katherine Langford) e os seus colegas tentam, a custo, fazer: viver. Para adolescentes, isto é, aquela fase estranha do desenvolvimento, sobreviver por si só, pode já ser uma realidade penosa. Sem as explosões espontâneas, eles têm de lidar com o tão temido acne, passar pela tentação do sexo, drogas e álcool, passando pela construção de uma imagem corporal saudável, as sempre complicadas relações amorosas e o fazer e desfazer de amizades, além do constante questionamento identitário. Parece pouco? Da confusão inicial, emerge Dylan (Charlie Plummer), um colega de turma a quem Mara nunca prestou atenção, a confessar com leveza a sua paixão por ela. Podem morrer em qualquer altura por isso, mais vale admitir os seus sentimentos. Ela retribui, sabendo, de antemão, que têm um alvo sobre as suas cabeças e que podem ser a próxima vítima da estranha maldição que se abateu sobre a turma. Assim, o que começa num registo de comédia de terror evolui para uma comédia romântica dramática. Há mil e uma formas de explorar as dores de crescimento. A explosão aleatória e espontânea de corpos humanos é apenas mais uma! E, neste caso, resulta na perfeição. “Spontaneous” trilha o caminho do luto e a espiral de decadência a que tal pode conduzir: se é dificil um adulto sair do outro lado intacto, imaginem malta que ainda está nos seus anos formativos e a adquirir mecanismos para lidar com a vida, as pessoas que almejam ser e as inevitáveis ilusões e desilusões que lhes surgem no caminho. Langford e Plummer têm desempenhos sólidos e credíveis. As suas personagem são espirituosas, atrevidas e rebeldes da forma que os verdadeiros adolescentes são mas sem nunca se tornar irritantes, como num argumento da Diablo Cody. Sem tom moralista, uma mensagem implícita a extraír deste “Spontaneous” pode ser “Carpe Diem”. 


7) O dia repete-se. 

“Palm Springs”

Deve haver qualquer coisa de irónico, uma piada cósmica diria, com o lançamento de um filme sobre reviver o mesmo dia, todos os dias, num loop infinito, numa altura em que meio mundo se encontrava fechado em casa à conta de uma pandemia, a descobrir quão aborrecidas são as novas rotinas. “Palm Springs” é um foco de luz no meio da escuridão. Um dos bons filmes que têm saído nos últimos anos a pegar no conceito e encontrar-lhe novas perspectativas de análise que permitem que esse não se torne, passe a piada, repetitivo. Um deles é o pormenor óbvio de que não é preciso ser-se uma pessoa terrível para lhe suceder tal destino. Acho que não escapa a ninguém como a vida pode ser injusta. Por outro lado, por que não dar à miséria uma companheira? Andy Samberg encontra-se igual a si próprio no estilo cómico que tão bem se lhe conhece mas é uma Christin Milioti, melancólica, empática e com timing para comédia impecável capaz de fazer concorrência ao companheiro de infortúnio. A sua Sarah que abraça a certeza de ser a ovelha ronhosa da família e embarca na autodestruição é digna da nossa piedade e faz com que queiramos torcer por ela apesar do segredo que carrega, todos os dias, como um fardo. É óbvio que a dupla tem personalidades diferentes e o argumento extrai daí as maiores gargalhadas. É também inequívoco que são almas gémeas que ainda não perceberam que o são. De resto, é na energia trocada entre Samberg e Milioti que reside a alma desta comédia romântica. “Palm Springs” ainda atira alguns conceitos quânticos complicados de última hora que não interessam a ninguém mas também não prejudicam o filme. O que fariam se tivessem todo o tempo do mundo?


8) O que a mente esconde.

“I’m thinking of Ending Things”

Durante algum tempo debati-me com o significado deste filme e se de facto tinha gostado de o ver. O facto de ter permanecido na minha memória venceu a minha hesitação inicial. Que interessa se há uma utilização abundante de citações de autores que não li e o explanar de teorias que não me interessam por aí além? “I’m thinking of Ending Things” é um affair tão intimista e tão pensativo quanto o “Eternal Sunshine of The Spotless Mind”. Embora seja, porventura, um momento menos pessoal e mais solitário por parte de Charlie Kaufman, dado que este filme é, afinal, a adaptação de uma obra literária a que, especulo, não falte em densidade. Acompanhamos um casal que se juntou há pouco tempo, numa viagem à quinta dos pais dele para apresentar a nova namorada. Na viagem, na casa, em cada momento, a jovem e, isto é importante – o nome dela varia conforme a perspectiva –, contempla terminar a relação, mas será mesmo a isso que se refere? O filme dá uma volta para o surreal, quando os pais são apresentados e as situações se tornam embaraçosas e insólitas à medida que vão discorrendo sobre o seu querido menino e os seus feitos. O filme é narrado pela jovem. Entretanto, surge um senhor mais velho, no seu trabalho de limpeza numa escola, enquanto a vida passa por ele. Qual será a ligação? Acho que a ordenação cronológica e a obsessão por encontrar um inicio, meio e fim podem redundar na resposta negativa ao filme. Quem viu as obras anteriores de Kaufman saberá que nada é por acaso e o significado está lá, mesmo que este seja diferente consoante a pessoa que o visionou. O que melhor resulta é a construção do interior, tão complexo, cheio de ego e esperança, aspirações, desejos concretizados e outros que não passam de uma miragem de que a nossa jovem é incorporação viva e o Jesse Plemons é brilhante na encarnação do cansativo Homem aspiracional por que qualquer mulher teria o prazer e a honra de se entregar. Ou assim se quer fazer parecer. 


9) Julgados por um pensamento

“The Trial of the Chicago 7”

Eis a segunda entrada de Sasha Baron Cohen na minha lista de final de ano e num filme também político. Tenho a sensação de que “The Trial of the Chicago 7” passou despercebido, pelo menos quando comparado com “Da 5 Bloods” do Spike Lee. Enquanto um menciona a oposição à Guerra no Vietname pelos olhos de hippies e objetores de consciência, o outro fala da Guerra do Vietname por quem a viveu na pele e os traumas que esta provocou. São ambos profundamente políticos e pertinentes para o momento histórico que atravessamos. Nos anos 70, como neste preciso momento, as questões raciais estão na ordem do dia e a  concretização efetiva de justiça é questionável. Aaron Sorkin conduz um elenco vasto, com uma excelente direção, num dos momentos mais emblemáticos da oposição à Guerra e conta a história das intenções, das tensões, do incidente e do drama em tribunal, como se de um documentário se tratasse. Acompanhei o percurso colada ao ecrã, enquanto me divertia com as liberdades exaltadas na época e o desafio constante dos homens que sabiam estar a ser julgados por motivos políticos revanchistas e me indignei com o despudor com que as forças políticas e o Excelentíssimo Juiz Julius Hoffman demonstrava preconceito para com as suas ideias e lhes negava justiça em cada momento. Apesar das diversas iterações em cinema e documentário, a história nunca me pareceu tão essencial de revisitar como em 2020. A exposição mediática da excessiva prisão de homens não caucasianos, o movimento Black Lives Matter, a ascensão dos supremacistas brancos com o apoio do seu Presidente e do Congresso americano urgiam a que se fizesse uma revisão histórica e perceber que, afinal, os passos dados desde 70 foram tímidos e pouco ou nada fizeram para mudar o status quo. Sorkin conduz os trabalhos com o respeito e a sabedoria que já lhe (re)conhecíamos, ainda que faça sempre um piscar de olhos às suas películas anteriores. Tudo isto para dizer que a história não é dele mas o filme é indelevelmente seu. 


10) O dia repete-se. Novamente.

“Boss Level”

Confesso que não esperava incluir este filme na minha lista de melhores do ano. Raios, nem sequer alguma vez pensei que um filme com o Frank Grillo pudesse alguma vez integrar um top de qualquer coisa com “Melhor”, no título. Ah, e antes que digam que o filme é de 2021, tenham lá paciência que o filme já foi exibido em algumas salas no ano de 2020, portanto, vou recusar sempre essa crítica. Certo é que se alguém me falasse no Grillo para me vender um filme, iria responder com um inequívoco "não" e atirá-lo para o fundo da lista, que é GRANDE. Para mal deste “actor”, para mim será sempre aquele gajo de higiene duvidosa, que transpira machismo e ação chunga por todos os poros do corpo. Não é exactamente uma imagem sexy aqui para a je. Agora, se me falarem no conceito “Groundhog Day”, só irei perguntar a que horas querem que ligue a televisão. Em “Boss Level”, Grillo interpreta um agente de elite reformado que entrenta todos os dias, desde o momento em que acorda, tentativas de assassinato por parte de desconhecidos que o tentam alvejar, fazer explodir ou esquartejar. Porquê? Ele não sabe, mas também ele não é muito esperto. Se calhar tem algo que ver com o trabalho SUPER SECRETO QUE A EX DESENVOLVE NUM LABORATÓRIO OPERADO PELO ULTRA SUSPEITO MEL GIBSON! A esposa é uma Naomi Watts competente mas resignada ao papel de mãe e um Mel Gibson que está em sintonia com o seu Nicholas Cage interior e abraçou o facto de fazer todo o tipo de filmes por um cheque e que acabam por ser os papéis mais interessantes da sua carreira. O estilo videojogo, tão em voga e a que “Guns Akimbo” ou um “Free Guy” ainda por estrear se entregam é refrescante quando assumido sem preconceito. Os níveis de jogo, com os respetivos “Boss” over the top e as frases que lançam para o público consciente da piada que se encontram num delicado equílibrio entre a poesia e o azeite, são, no mínimo, um retorno à infância. Foi só um dos filmes mais divertidos e inesperados do ano. Pensem em: “Crank” + “Goundhog Day” + “Street Fighter”.


terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Top 10 Filmes 2020 - Parte I


Quem me visita há alguns anos sabe que não tenho por hábito fazer tops anuais, apesar de ser fã de listas. É uma forma sempre interessante de organizar informação e descobrir novos filmes mas pouco mais. Os filmes que colocamos no topo hoje, podem não ser os mesmos amanhã. Como tal, tenho sempre receio de dizer que são os melhores do ano. Mas este foi um ano atípico e anos atípicos exigem respostas diferentes. Assim, aqui fica, sem mais demoras, a 1.ª parte dos meus filmes favoritos de 2020:


1) A história de uma irmã

"Gretel & Hansel"

Grimm e Perkins são no papel e na execução uma combinação de sonho. Pode ter sido uma abordagem tímida e subtil mas 2020 foi o ano dos filmes sobre mulheres. Depois do #metoo expôr o sexismo e hipocrisia que permeiam toda a existência dos géneros, era uma questão de tempo até o cinema enveredar por um caminho que já tardava. De um “The Invisible Man”, a “The Assistant”, passando por uma “Wonder Woman 1984” – não sem a sua dose de polémica –, em 2020 a histórias das mulheres tiveram primazia.Porque haveria Hansel de ser o personagem principal? Perkins transpõe a carga pesada que todos os seus filmes corajosamente envergam, para um conto de crianças que já quase não o são e as bruxas que os acossam, num festim lindo para a vista e perturbador para a mente. Sofia Lillis é uma Gretel recém agraciada pela puberdade que tenta fugir por todos os meios à penúria e aos maus-tratos que esta traz, para si e para o irmão criançola e desatento, sem ter de se acormodar ou perder a sua identidade. Num tempo que não se sabe muito bem quando é mas é bem evocativa dos horrores de uma idade média e das suas superstições, acompanhamos os dois irmãos à medida que navegam de poiso em poiso, à deriva, até cairem nas garras da demasiado amistosa para ser real Holda (Alice Krige). Gretel conta apenas com o espírito inquisidor permanente e o ardor de sobrevivência para escapar a um terrível destino. Os sintetizadores e um design de produção com laivos de inspiração art-deco, ainda ajudam mais à sensação de anacronismo e surrealidade. Um dos momentos cinematográficos mais intrigantes do ano. Para mais notas sobre este filme podem acompanhar o meu contributo para o podcast Segundo Take, no qual se faz o balanço de 2020, com vários bloggers e podcasters convidados.


2) Borat torna-se pai!

"Borat Subsequent Moviefilm: Delivery of Prodigious Bribe to American Regime for Make Benefit Once Glorious Nation of Kazakhstan"

Este Borat reune várias distinções: é o 2.º na minha lista pessoal, é uma boa segunda sequela e o título mais maior grande a largas milhas de distância dos outros filmes que enumero e, cujo título, desafio a que enumerem em voz alta sem ir consultar a Wikipedia. A sequela é, também, o que poucos esperavam de Sacha Baron Cohen, neste ano para ele, a todos os níveis extraordinário, tendo surgido num registo tonalmente diferente mas em nada inferior em “The Trial of the Chicago 7”, depois de um marcado por um atroz Grimsby entre outros papéis histriónicos ou esquecíveis. Que ninguém me interprete mal, eu repito e subscrevo todos os elogios rasgados à novata Maria Bakalova que é quem brilha mais alto no final. No entanto, onde o primeiro Borat exigia atenção e o fazia do modo mais exuberante possível, aqui temos um personagem mais maduro e consciente do seu impacto. O Borat do trikini verde, imagem que marcou indelevelmente a carreira de Cohen subsiste mas não se importa de ceder o seu lugar no palco de vez em quando. A sequela tem no seu núcleo o tema universal da relação entre um pai e a sua filha, na sua forma tão própria de o demonstrar, ainda que a crítica à hipocrisia implícita e manifesta das políticas norte-americanas sejam o alvo do escárnio. A pandemia Covid-19, os padrões absurdos de beleza, o conservadorismo, o consumismo desenfreado, encontram todos, de forma natural o seu lugar neste filme. Sem esforço.


3) Filho de Peixe sabe Nadar

"Possessor"

Possessor" é tudo o que se pode ansiar de um Cronenberg se bem que num registo mais contido. Entenda-se que sexo, violência explícita e a fusão homem-máquina, se mantém temas transversais muito vívidos e presentes. Onde o pai deixa a imaginação ir aos píncaros, Brandon parece saber editar. Sem dúvida que o filho também opera no negócio da densidade mas não o faz de modo que o conteúdo se torne indistinguível e frustrante. Em “Possessor” explora os caminhos da identididade de como pode ser tão fácil perdê-la, se já estiver fracturada, quando se forma uma ligação simbiótica com a tecnologia. Andrea Riseborough está irreconhecível no papel de uma Tassia Vos que faz de assassina por uns dias e depois regressa à aborrecida rotina de mãe e esposa de seres humanos que lhe estão cada vez mais distantes. Ela é quase como um peixe fora de água, a lutar contra o inevitável e aos poucos sufocar. Vos entra sem ser convidada nos corpos de pessoas e actua como uma hóspede insidiosa forçando-os a matar os alvos que lhe são assinalados pela chefe Girder, interpretada por uma Jennifer Jason Leigh cada vez mais lacónica e arrepiante. É uma questão de tempo até perder o controlo. Christopher Abbott, um sósia do Kit Harington mas em bom actor, interpreta a personagem que vai levar Tasia aos limites ao recusar-se domar por ela. A questão que se coloca a Vos e ao pública é se que cada vez que termina um trabalho, ela perde mais um pouco a sua humanidade e é mais a máquina assassina ou se será o contrário e a assassina é que constitui a sua verdadeira identidade. 


4) Deploráveis para que vos quero

“The Hunt”

Foi adiado por coincidir com o infeliz timing de tiroteios em solo norte-americano. Os testes de audiência terão revelado algum desconforto com os contornos políticos da mensagem do filme. Enfim, o Agente Laranja, com certamente pouco que fazer na presidência dos EUA naquele dia, fez uma publicação no Twitter que acusava as elites de Hollywood de troçar com a sua base de apoio. O sucesso não lhe estava destinado. Todas estas peripécias extra filme captaram a minha atenção e a percepção com que fiquei é que a iliteracia é um problema sério. A ironia patente em “The Hunt” nem é assim tão fina. Mostra uma certa elite que se considera superior a caçar humanos, o que por si só, já desmontra o seu argumento. Os caçados são na sua parte pessoas com pouca educação, pouco inteligentes e a quem faltam algumas qualidades inerentes à formação de um bom carácter. Ninguém fica exactamente bem na fotografia. Os argumentistas podiam ter ainda ido um pouco mais longe para enfurecer os deploráveis – recuso-me a empregar aquela hashtag -, mas os caçadores são tão humanos, imperfeitos e hediondos como visualizam as suas presas. O gore e o facto de ninguém estar livre de uma morte se não horrenda, cómica, como uma Emma Roberts que é despachada num instante, são outros motivos de interesse além da componente política. Equipa Schadenfreude me assumo! “The Hunt” também nos traz o melhor confronto feminino de 2020. Que me perdoem os fãs da Wonder Woman mas a luta com a Cheetah é do mais meh que há. Não não, vejam mais é a Hillary Swank no papel de liberal insuportável que enfrenta uma Betty Gilpin como uma sulista lacónica que não está ali para acatar a bestialidade para que foi arrastada. Esquerdalha vs. Direitolas? Amo.


5) Lovecraft Submerso

“Underwater”

Há uma boa meia dúzia de anos cometi o erro de ver 15 minutos de “Twilight”. Foi uma experiência transformadora. Decidi então que a Kristin Stewart era a pior actriz em exercício da sua geração. O Stress Pós-Traumático dita que continue a não gostar dela mas cá estamos. Ela é a heroína de ação que não sabia que precisava. Ela é pequena, franzina, diminuta, mas os acontecimentos impelem-na para a ação quando a estação de pesquisa em que trabalha é abalada por um terramoto. Onde outros entram em pânico ou desesperam ela age, mesmo que não esteja assim tão certa de querer sobreviver. A ação é rápida e não pára, traduzindo a sensação de emergência que a destruição iminente do ambiente onde os personagens se encontram evoca. Não há tempo para descansar, para reflexões filosofias, planos demasiado arriscados. É tempo de reacção. Onde “Underwater” me perde é nas profundezas. Há momentos em que é impossível perceber o que se passa debaixo de água, de tão escura que é a imagem e que me deixou tentada a carregar no “pause”. É certo que falamos das trevas do oceano. No entanto, não custava muito inserir algum iluminação adicional, da própria plataforma para se discernir alguma da ação.  É uma miscelânea de terror claustrofóbico como um “The Descent”, com aquele que todos tentam emular, “Alien”, sem ter sucesso na totalidade. Contudo, revela-se um exercício interessante e que gostaria de ver replicado no futuro. Num ano em que o terror interior foi rei esperava um pouco mais que elevasse “Underwater” com as suas criaturas Lovecraftianas aos alturas dos melhores creature movies.



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