sábado, 21 de novembro de 2020

"Shanghai Fortress" (Shang hai bao lei, 2019)



"Shanghai Fortress" é uma espécie de "Under the Dome" chinês, com um mix de muitos outros exemplares cinematográficos americanos (demasiados para contar mas não quer dizer que não tente!), em que a humanidade, após uma invasão alienígena, sobrevive sob uma espécie de cúpula, um escudo invisível que serve de campo de forças para repelir os aliens, usando como combustível "xiangteng", que foi descoberto e é detido pela população chinesa sobrevivente. A nave-mãe dos aliens, ataca ocasionalmente o escudo e a cada ataque este fica mais fraco e a humanidade mais vulnerável. Num universo em que "Shanghai Fortress" fosse um filme a sério, isto teria a sua piada dado que os alienígenas estão a atacar a humanidade para lhe retirar o recurso que é o que a está a proteger. Porquê insistir no tal combustível? Porque não cedê-lo simplesmente? Não é como se o Homem tivesse muito pudor na utilização de outros materiais fósseis...


De facto, "Shanghai Fortress" é tão inépto que podia ter saído de um daqueles livros da série "Para Totós", intitulado "Como fazer Ficção Científica chinês em poucos passos para totós". É que o filme nem sequer sofre da problemática de falta de material onde se basear. É a adaptação de uma obra de ficção com o mesmo nome, escrita pelo escritor chinês Jiang Nan, também conhecido pelo título altamente original e nunca antes ouvido "Once upon a Time in Shanghai". O orçamento, que se diz por essa internet fora ter custado 400 milhões de yuan, até serviu para contratar um elenco muito jovem (e talento duvidoso), com pelo menos um ou dois ídolos muito famosos para figurar como "eye candy". Destaque-se o ex-membro de uma boysband Luhan aqui como o protagonista Jiang Yang, um militar que além de padecer de dores de amor pela sua superior Lin Lan (Shu Qi), pilota drones, frequenta discotecas nos tempos livros e parece enfadado 100% do tempo e até um pouco inconsciente quanto À INVASÃO ALÍENEGINA E FINAL ANUNCIADO DA HUMANIDADE! 
O elenco tenta uma pose séria

As gentes do casting, tiveram pelo menos o bom-senso de contratar pelo menos um bom actor para conferir credibilidade - uma Shu Qi ("The Assassin", 2015) num papel em que a atriz parece contar os minutos para abandonar a rodagem e limpar a lágrimas com os muitos yuan que decerto ganhou para o fazer. Oh, como os grandes caem! 
"Homenagem" sempre é um nome mais fofinho que cópia descarada, portanto, digamos que esta produção foi buscar inspiração às seguintes obras: "War of the Worlds", recordam-se de referir que os alienígenas estão a atacar o planeta porque querem roubar os recursos da Terra? "Independence Day" (1996) dado que o design da nave-mãe é tirada a papel químico das naves gigantescas do filme americano, porque saem raios destruidores da nave, ou a inclusão do patriotismo que nos impõem pelos olhos adentro, o próprio final do filme... enfim, diria que reviram vezes sem conta esse filme fantástico e piroso, para ver onde o que podiam levar emprestado e como é que podiam "elevar" o material. Também achei curiosa a inserção de actores estrangeiros pelo simples facto de o serem para representar o resto do mundo. Também podemos falar do "Core", "The Day After Tomorrow", entre muitos outros filmes-catástrofe, por causa dos eventos atmosféricos anormais e pelo grau de destruição a que a cidade de Shanghai é votada. Os momentos dedicados a estes acontecimentos são, de forma infeliz, parcos, para um filme com a escala que prometia ter. Num festim de efeitos gerados por computador, esses são muito desiguais mas também os mais fugazes, havendo alturas em que os efeitos estão tão maus que temos, enquanto audiência, de nos questionar, o porquê da sua integração no filme se o resultado é tão misto. 
O mundo está em ruínas mas que importa? As discotecas ainda estão abertas!

Depois há o romance. Nada contra. Há quem considere que o romance confere um grau de urgência, de gravidade até, às películas. Por seu turno, as audiências chinesas adoram um bom romance delicodoce entre pessoas bonitas. Para mal de pessoas como eu, venderam-me um filme de ficção científica. A última coisa que quero ver num contexto de invasão alienígena e luta pela sobrevivência da humanidade é um romance que parece deslocado do próprio filme. Não há uma pitada de química entre os protagonistas. Ainda que tivesse algo contra a grande diferença de idades entre os protagonistas (Shu Qi e Luhan) ela uma quarentona e ele na casa dos vinte e poucos e, a diferença nem parece assim tão acentuada - ela está muito bem conservada -, já vimos muito mais creepy: Marlon Brando e Maria Schneider, cof cof. Só que até a porcaria do pseudo-romance está mal cozinhado. Lin Lan nunca dá mostras de corresponder à paixonite quase adolescente do Jiang Yang e, para mais, ela é superior dele. Confraternizar com subalternos?! 
Gostava muito de dizer que por muito desmiolado que "Shanghai Fortress" fosse, a experiência de visionamento tinha sido divertida mas não consigo. Com uma hora e quarenta e sete minutos consegue ser demasiado longo e um tédio de atravessar. É tempo das nossas vidas que não recuperamos. Tal como escrever este "texto". Suspiro.
Por fim, como piéce de resistance (se eles podem recorrer a tantos clichés eu também posso seguramente usar esta expressão), ia referir que os criadores deste filme deviam pedir desculpa pela trapalhada que fizeram mas parece que o realizador, o escritor/argumentista e o actor principal também já o fizeram. Depois do sucesso extraordinário de "The Wandering Earth" o género scifi parecia ganhar tracção na China. O estrondoso fracasso de "Shanghai Fortress", meros meses depois, pode ter sido o beijo da morte. Meia estrela.


Realização: Hua-Tao Teng
Argumento: Jinglong Han (argumento), Jiang Nan (autor do livro e argumentista)
Qi Shu como Lin Lan
Godfrey Gao como Yang Jiannan
Luhan como Jiang Yang
Sen Wang como Pan Hantian
Liang Shi como Shao Yiyun 
Vincent Matile como George Bradley
Jialing Sun como Lu Yiyi



segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Suores Frios - "Piratas, coelhos, fantasmas e outras criaturas." - por Nuno Reis

Tenho a sorte de ter um pai que nunca me privou de cinema, fosse ele bom ou mau. Da mesma forma que ele me levava a festivais e a visionamentos de imprensa quando eu era pequeno, agora sou eu que o levo a festivais e o chamo para ver os DVDs que me chegam como membro da crítica. É um prazer ouvi-lo falar de filmes que nunca encontrei e outros que certamente não terei tempo para ver. Ainda hoje a conversa foi parar à crítica social nas obras de Billy Wilder a propósito de em zapping antes do almoço termos apanhado o final de “Jaws”. Ainda que conheça estes filmes bem como espectador, ouvir a perspectiva de quem os viu noutra época ajuda a compreender o seu impacto. Ficou decidido há muito tempo que para filmes anteriores aos anos 80 era ele o entendido, mas daí em diante era eu que ia devorar tudo. Assim nunca estamos em desacordo.

Como referi por algumas ocasiões, eu cresci no meio do cinema fantástico. Até hoje é por esse prisma que vejo o Cinema. Enquanto uns se maravilhavam por ver pessoas a sair da fábrica postas em tela pelos Lumiére, eu só me maravilhava quando as pessoas saíam da Terra pela mente de Méliès. Portanto, quando se trata de ter primeiras memórias do cinema, claro que se enquadram no género. Mas os suores frios começaram muito antes do terror...

O primeiro filme que me lembro de ver em sala foi “The Goonies” na altura era eu tão pequeno que nem sabia ler. Fui levado pelo meu pai atencioso e para a minha mãe eu ia ver a história de uns meninos que saíam de casa para explorar um farol abandonado. Claro que o detalhe de os mafiosos matarem inspectores, cortarem línguas a crianças, o chão se desfazer enquanto tocam piano e haver um esqueleto em cada esquina até serem atirados da prancha causou um impacto em mim. Todavia, não sei se hoje em dia lhe chamaria terror. Dizem-me que até chorei, mas todos admitem também que foi aí que me apaixonei pelo Cinema.

A esse seguiu-se “Who Framed Roger Rabbit?” que causou um impacto bem diferente. Aqui avisei o meu pai que já sabia ler e para ficar calado durante o filme! Alheio ao que fosse o tal de noir, simpatizei logo com aquele coelho brincalhão. A interação com tantos heróis dos desenhos animados que eu conhecia desde sempre ajudou a dar uma aura de realidade. E subitamente vão derretê-los? Fui enganado novamente! Mais uma noite sem dormir!

Quanto a terror propriamente dito, começou de forma ligeira. Terá sido um “Beetlejuice”, “Ghostbusters 2”, “Gremlins 2” ou “Edward Scissorhands”. Cresci a ver esses filmes e não sei precisar qual veio primeiro (ainda que saiba que vi as sequelas aqui referidas anos antes dos originais, tal como conheci o Lobisomem Americano em Paris antes de conhecer o de Londres). Vi filmes maus, filmes bons, filmes que não consegui ver inteiros de tão maus que eram, outros que não vi até ao fim de uma só vez por ser medricas, e cenas que não esquecerei ainda que não faça ideia do título. Como explicar que eu soubesse quem era Freddy Kruger anos antes de conhecer Elm Street?

O meu amor pelo Cinema começou muito próximo ao terror. No entanto, não sou fã do susto fácil ou das atmosferas claustrofóbicas que se prolongam por toda a duração o filme. Hoje em dia já poucos truques funcionam comigo e portanto serei mais fã de algo que misture ou brinque com o género do que de algo que siga a receita gasta. Se algo me causar suores frios, é porque foi bem escrito e não por estar cheio de momentos que arrepiam. Nenhum filme me vai deixar acordado com medo de fechar os olhos. Mas um grande filme pode-me deixar a pensar nele pela noite dentro. São coisas bem diferentes.

O Nuno Reis vai escrevendo ocasionalmente no https://antestreia.pt e no https://thescifiworld.com. Também pode ser encontrado aqui: https://www.imdb.com/name/nm4591473/


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Suores Frios - "O Cristal Encantado: o lado negro do Jim Henson" - por J.B. Martins

Tal como aconteceu com tantas outras crianças nascidas em meados dos anos oitenta, as criações do Jim Henson foram um pilar essencial na minha formação e permitiram-me, por exemplo, transformar sons em letras e essas letras em palavras muito antes de iniciar a escolaridade obrigatória. 

A bonecada do Jim Henson eram um porto seguro, uma espécie de segunda família com a qual podia aprender tudo o que precisava para singrar nesses primeiros anos como habitante deste bonito planeta azul. Algumas das minhas primeiras (e mais felizes!) recordações audiovisuais envolvem o Cocas, o Gualter, o Becas e o Egas ou o Conde de Kontarr. Mas, como estava prestes a descobrir, nem tudo eram rosas no mundo do Jim Henson.

Não me lembro ao certo quando tive o primeiro contacto com O Cristal Encantado (The Dark Crystal, no original) mas sei que nada me tinha preparado para aquele momento.

O mundo de O Cristal Encantado não é aquela rua castiça onde aprendemos os valores da igualdade e da tolerância e onde o mal não passa de um conceito abstrato. Este é um planeta em ruínas liderado por seres cujo poder está assente na destruição das outras espécies. Aqui não há sinal das criaturas afáveis e coloridas a que a casa Henson nos habitou. Aqui mandam os Skeksis, uma espécie de abutres asquerosos e desprezíveis que se arrastam e grunhem de uma forma que até hoje me faz gelar a espinha. 

São várias as cenas protagonizadas pelos Skeksis que me assombraram durante anos e nem é preciso esperar muito.

Logo nos primeiros minutos do filme vemos como o seu líder se desfaz em pó rodeado pelos outros membros do clã que, entre sussurros, aguardam com expetativa o momento perfeito para assumirem o poder, numa cena que lembra a icónica morte do antagonista na primeira aventura do Indiana Jones. 

Mas o momento que mais me marcou foi a sequência em que um Podling (umas das espécies que os Skeksis se divertem a maltratar) definha à nossa frente enquanto a sua energia vital é sugada e transformada num elixir que serve como alimento aos Skeksis e os ajuda a perpetuar a sua imortalidade.

No entanto, se este tipo de reação já seria expectável nos “maus da fita”, a verdade é que os “bons da fita” também não me inspiravam muita confiança, embora neste caso a rejeição estivesse mais relacionada com o desenho das personagens do que com as suas motivações. Os Gelflings, com as suas características demasiadas humanas e os seus olhos sem um pingo de vitalidade, caiam em cheio no “vale da estranheza” e a Aughra, com o seu olho “destacável”, era demasiado intimidante para um petiz que só queria que o Poupas aparece a voar a qualquer momento para salvar o dia.

Feitas as contas e passados todos estes anos, O Cristal Encantado é o exemplo perfeito da eficácia das marionetas e dos efeitos especiais orgânicos dos anos 80 à hora de mexer com o nosso subconsciente. Existem, mexem-se e estão realmente lá. São muito mais que zeros e uns sobrepostos num ecrã verde: são o material com que são feitos os sonhos... e os pesadelos.

(O J.B. Martins é sobretudo um indivíduo que fala de cinema na internet. Começou com um blogue, no longínquo ano de 2003, mas de há uns tempos para cá pode ser acompanhado no YouTube através do canal CINEBLOG)


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Suores Frios - " Pesadelo num copo de água" - por Pedro Miguel Fernandes

Nunca fui um grande fã do cinema de terror. Talvez o facto de ter sido um miúdo com medo de tudo e mais alguma coisa não me tenha ajudado no futuro a admirar e desbravar o género como fiz com outros mais tarde, à medida que ia descobrindo essa fantástica arte chamada cinema e os seus maravilhosos recantos. E se há altura ideal para termos medo destas coisas é precisamente quando somos garotos, mais tarde perde um bocado a piada com a perda da inocência. Mesmo quando acontece darmos um salto na cadeira do cinema à conta de um susto daqueles à séria quando aparece algum malandrão em cena sem avisar, acaba por se seguir um sorriso nervoso como quem diz ‘sacanas, enganaram-me, mas não me dão pesadelos que eu já não tenho idade para essas coisas’. Isto não significa que não me aventure uma vez por outra neste universo e por vezes até calha gostar de alguns títulos e há alguns realizadores que merecem muito do meu respeito. Mas se alguém me perguntar ‘então Pedro, vai uma fita de terror?’ há um grande grau de probabilidade de levar uma nega. A não ser que seja difícil resistir a sessões especiais em que o desafio seja algo como ver a trilogia Evil Dead pela noite fora com um grupo de amigos ou ir ao templo dos fãs de cinema de terror chamado Motelx para ver como param as modas no universo do terror. Moral da história: sustos e calafrios em miúdo com filmes de terror não houve muitos porque me afastava sempre deles como aquele sujeito com os dentes pontiagudos da cruz.

Contudo…como diria o outro, ‘no entanto, ela move-se’ e há um episódio marcante na minha infância que junta medo e uma sala de cinema: nem mais nem menos do que a minha primeira recordação que tenho de ver um filme num ecrã de cinema. Não me perguntem onde foi porque não sei onde terá sido, apenas me lembro do título do filme. Era o Indiana Jones e A Última Cruzada e nada melhor do que uma estreia no cinema do que o filme de uma personagem que permanece uma das minhas favoritas de sempre. Ou então não. Já antes, ao ver o anterior Indiana Jones e O Templo Perdido, tinha ficado aterrorizado com refeições com vida própria e a presença do mauzão de serviço, aquele que arrancava corações às criancinhas e cujo nome não me vem agora à memória. Mas nada me tinha preparado para ver um sujeito a ser transformado em esqueleto mesmo à frente dos meus olhos num ecrã gigante. A imagem ficou de tal forma retida na minha mente que a partir de então cada vez que ia buscar um copo para beber água demorava horas a decidir qual o copo correcto, não fosse acontecer alguma coisa estranha comigo.

Escusado será dizer que hoje em dia já nada disto me impressiona. Continua a ser um divertimento garantido ver qualquer um dos filmes da saga como aquando da primeira vez (descontando aquela coisa que fizeram com o puto dos Transformers a fazer de filho do Indy, que não apenas me suscita algumas palpitações de raiva), mas agora sem ter medo de esqueletos, cobras e alimentos esquisitos. Os medos agora são outros e os calafrios vêm de outros sítios, nenhum deles situado numa tela gigante ou pequeno ecrã caseiro. A idade tem destas coisas e das coisas que mais sinto falta desses primeiros anos é precisamente esse misto de fascínio e medo que tínhamos em miúdos perante aquelas imagens que hoje provavelmente nos fazem rir ou pelo menos passámos a vê-las com um sorriso nostálgico nos lábios. Mas ao menos já consigo ir buscar um copo de água sem passar uma eternidade a tentar escolher o copo certo.

Pedro Miguel Fernandes 

ex-blogger A Última Sessão (http://a-ultima-sessao.blogspot.com/) e Shut Up and Watch the Movies (http://shutupandwatchthemovies.blogspot.com/)


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Suores Frios - "A Imparável Marran" - por Daniel Reifferscheid

Admiro bastante a estratégia que os meus pais desenvolveram para guiar o meu consumo mediático enquanto petiz - nada estava propriamente proibido, e podia inclusive ficar na sala enquanto eles viam coisas que muitos pais não deixariam chegar perto dos seus filhos (filmes do Bunuel, Rocky Horror Picture Show, o 200 Motels do Frank Zappa), mas ao mesmo tempo tudo era contextualizado, não havia consumo passivo. Podia por exemplo vibrar à vontade com as aventuras do Batman, mas ao mesmo tempo o meu pai me explicava porque é que discordava de uma abordagem punitiva ao crime, e que problemas tinha com a história de um milionário que passa o seu tempo a violentar pessoas com distúrbios mentais. Pode soar ridículo, mas em retrospectiva estou muito grato por me terem criado assim - tive o prazer de consumir toda e qualquer cultura Pop, sentindo-me ao mesmo tempo confortável em aceitar que há mensagens inerentes a muita coisa que consumo nas quais não me revejo minimamente. 

Ao mesmo tempo, creio que os meus pais tiveram o seu trabalho facilitado pelo seguinte factor: terem um filho medricas.

Quando fui gentilmente convidado a participar nesta coluna, o maior problema que se me colocou imediatamente foi: como escolher? A minha infância está recheada de pequenos traumas, noites em branco fruto de todo o tipo de entretenimento. E claro que, crescendo numa aldeia em S. Miguel, não era preciso muito para passar por cobarde - finda a escola primária, todos os meus colegas já tinham digerido as franchises Halloween, Friday The 13th e Nightmare On Elm Street completas. Filmes de terror desses “a sério” eu nem me aproximava, mas mesmo assim conseguia aumentar medos e ansiedades com todo o tipo de monstrengos: temia principalmente vampiros (tanto que escrevinhava crucifixos nas paredes do meu quarto, levando a minha mãe a perguntar-se se tinha dado em gótico ou cristão), mas também havia espaço para o culto assassino em Young Sherlock Holmes (1985), para o Jabberwocky de Terry Gilliam e para os dois segundos e meio que apanhei sem querer do desenho animado Tales From The Cryptkeeper.

Parece que não havia história inofensiva o suficiente para não a conseguir transformar numa ameaça quando era pequeno. Nem mesmo uma adorada franchise infantil finlandesa. 

A série Mumin não dirá muita coisa a um público português, mas em grande parte da Europa são tão adorados como qualquer Clube das Chaves ou Uma Aventura, e com muita boa razão: os livros originais, escritos pela finlandesa Tove Jansson, são da melhor literatura infantil que existe e, arrisco-me a dizê-lo, da melhor literatura do século vinte, ponto. Para dar só um cheirinho, eis a génese desta simpática família de trolls com aspecto de hipopotámo: aos treze anos, a jovem Tove teve uma discussão violenta com o irmão mais velho acerca do filósofo alemão Kant. Tão enraivecida estava ela que marchou para a casa de banho, sacou de um lápis e desenhou na parede a criatura mais feia que conseguiu conceber - e assim nasceu a família Mumin.

Com esse contexto, já devem ter adivinhado que as histórias de Jansson não são contos infantis genéricos: são histórias carregadas de uma profunda melancolia, e cujas personagens frequentemente exibem problemas a tender para o existencial. Como tal, a Marran (Morra em alemão, Groke em inglês), espécie de vilã dessas histórias (o rótulo é na verdade bastante redutor) também não exibe os traços de um mauzão típico. Não é motivada pela ganância nem pela vontade de destruir o mundo; não irrompe em ataques de raiva; não possui capangas nem esquemas. É, tão somente, uma criatura negra, redonda, que traz a miséria a tudo que toca. 

Esta criatura aparece em vários livros da série, mas o meu contacto com ela enquanto criança veio principalmente através de uma parte da adaptação para anime da saga: nesta, os Mumins conhecem dois pequenos duendes que usam a casa da família como asilo após terem roubado algo que pertence à Marran. Inevitavelmente ela aparece para reaver o que lhe foi roubado; a família defende os pequenos duendes, mas negociar com a entidade parece impossível.

Como sempre nestas coisas, a minha lembrança é bastante diferente do que realmente acontece no episódio, que pode ser visto aqui (https://youtu.be/O-WWdLx0V1Y) - , disponibilizado gratuitamente pela conta oficial dos Mumins. Na minha memória, o confronto final entre os protagonistas e a Marran, com o pai Mumin de espingarda à porta, acaba com o monstro simplesmente a retrair-se, por razões obscuras, deixando muito claro que as acções da família são irrelevantes para a questão; na verdade, a Marran retira-se porque o pai Mumin lhe dá alguns segundos após os quais irá disparar. Pior ainda, a Marran despede-se com um Schwarzeneggeriano “I’ll be back!”; na minha memória era um monstro completamente mudo.

Mas mesmo assim, consigo ainda sentir um pouco daquilo que me aterrorizou em pequeno: a Marran como uma ameaça fatalista, que mais cedo ou mais tarde irá triunfar (a própria narração do episódio sugere isso); e também uma ameaça que vai para além da razão, com a qual é impossível comunicar, quanto mais negociar. Devo mencionar que a série animada dos Mumins não é tida em muito boa conta entre os apreciadores das obras de Jansson - a animação é bastante limitada e os enredos não completamente fieis à autora. No entanto, estaria a mentir se dissesse que parte do impacto que teve sobre mim não se deveu à interpretação que a série fez. Na versão que eu vi (existem várias) era negra, com um sorriso vazio estampado na cara. Some-se a isso também a banda sonora - ao reouvir o seu tema (https://youtu.be/jHyR8kD2Uuw) hoje detecto uma semelhança com algumas das composições mais macabras de Ennio Morricone (Le Trio Infernal - https://youtu.be/WzKYIIBLPbc, por exemplo), mas com um travo synth mais pronunciado.

Nos livros, a criatura acaba por ser mais ambígua - condenada ao frio e à solidão pela natureza, por vezes pode ser ouvida a uivar de desgosto, sozinha na floresta. De facto não existem verdadeiros vilões nem heróis num universo soficticado como o de Janssen. Mas nos meus pesadelos, será sempre uma ameaça imparável, a aproximar-se…e aproximar-se…

Daniel Reifferscheid é o anfitrião do podcast de cinema português Prestes A Ver (prestesaver.libsyn.com), bem como do programa de rádio You Know The Score, especializado em bandas sonoras, transmitido na Rádio Quântica. Aos trinta e cinco anos tem orgulho em dizer que já consegue ver filmes da Hammer sem ter medo e que, chegado aos quarenta, deverá estar pronto para experimentar o The Exorcist


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Furie (Hai Phuong, 2009)

As 3 fúrias são 3 figuras da mitologia grega e, mais tarde romana, cuja estória de origem difere mas, no essencial, ligadas ao submundo, que perseguem com um espírito de justiça vingador as pessoas malévolas. Pretende-se, através do temor a estas que as pessoas não tenham atitudes condenáveis a nível moral e societal como o homicídio, ofensas contra os deuses, conduta pouco filial ou perjúrio.

Hai Phuong, interpretada por Veronica Ngo, mais conhecida a nível internacional pelo pequeno mas impactante papel de Paige Tico e, mais recentemente, como Quynn em The Old Guard é a Fúria titular. Algures um executivo considerou que manter o nome da personagem não traduziria bem para as audiências internacionais mas o que é que eu sei de marketing para cinema? Hai Phuong é uma ex-gangster que largou a vida do crime e mudou de cidade após descobrir que estava grávida. Nesta nova encarnação a pobreza e um trabalho legal, mas demasiado próximo para conforto da antiga vida que abandonou - faz a cobrança de dívidas -, valem-lhe a censura da filha Mai (Mai Cát Vi) e a desconfiança dos locais. Num raro momento em que questiona a inocência da filha, acusada de um roubo que não cometeu, esta foge e acaba por ser raptada por bandidos. Para Hai Phuong é impossível assistir de forma impávida e serena, promovendo uma perseguição implacável para reaver a sua filha antes que seja tarde demais.

Se Furie parece familiar é porque já vimos outros filmes de mães-coragem lutando, contra tudo e todos, para reaver a sua prole. Mas e se vos disser que a Veronica Ng já fez este filme antes e melhor? Em 2009, Ng fez o filme "Clash", cuja apreciação podem encontrar neste mesmo blog, com Johnny Tri Nguyen, um actor praticante do Vovinam (arte marcial vietnamita), em que Ng, que também integrava o submundo do crime tentou resgatar a filha das mãos de um barão do crime. As cenas de acção corpo-a-corpo eram pelo menos mais realistas e o final surpreende.

Furie, lamento dizê-lo, aparte uma perseguição de mota ao longo de um rio e da capacidade da actriz de nos bombardear com torrentes de água oriundas dos seus canais lacrimais - juro que pensei que ninguém conseguia fazer concorrência às actrizes coreanas -, é uma desilusão. Sim, há cenas em que o elenco pouco mais que secundário, além de Hai Phuong e de um polícia que decide apoiá-la dá mostras de atleticismo, no entanto, a coreografia fica aquém do que já se fazia em 2009. Com isto, não menosprezo a importância de uma arte marcial menos conhecida ter atenção no palco mundial, à semelhança do que sucedeu em 2011 com "The Raid: Redemption", para mais, quando esta demonstra um nível de realismo longe das encenações graciosas de kung fu de inícios do milénio que já cansam e se aproxima mais do fenómeno John Wick (2014) ou Atomic Blonde (2017). A violência é esperada e quase glamorizada, os golpes são vistos e quase sentidos, o argumento é muitas vezes mínimo, com pequenas pausas para respirar, ao encontro das expectativas das audiências dos novos filmes de acção de 2010 em diante.

O argumento de Furie, não é muito exigente, dando total enfoque à missão de Hai Phuong, sendo pontuado pelos clichés do bandido que surge das brumas de um passado tenebroso para se vingar de ofensa cometida e dos familiares que foram deixados para trás, a quem se pede auxilio em altura de desespero, como se preencher os pontos de uma checklist se tratasse. Por isso, fico também, muito surpreendida com a comoção em torno de Furie. Se a relativamente nova fama de Ngo atrair as atenções para o cinema vietnamita tanto melhor mas, não se enganem pensando que Furie constituirá uma obra superior. Duas estrelas e meia.


Realizador: Le-Van Kiet
Argumento: Kay Nguyen
Veronica Ngo como Hai Phuong
Mai Cát Vi como Mai
Thanh Nhien Phan como Capitã Vu Trong Luong
Pham Anh Khoa como Truc
Kim Long Thach como Huy
Khanh Ngoc Mai como Ngoc
Hoa Thanh como Thanh Wolf

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Suores Frios - "Não abandonem os animais" - por Manuel Reis

Quando a Rita me convidou para escrever um texto para o blog dela, pensei logo que não vejo regularmente terror (nem filmes asiáticos). Mas a categoria foi aberta à "angústia", e aí… há alguma coisa.

Posso considerar que a minha infância cinéfila foi segura q.b., com muita animação da Disney, da Warner/Turner/MGM, algumas coisas europeias e canadianas… e alguns filmes já para maiores de 12 ou 16 - acho que vi o Robocop pela primeira vez quando tinha 6 anos, e os braços a explodir eram fixes, mas não tinha discernimento para perceber que aquilo não devia ser transmitido aos sábados à tarde na televisão.

Mas, indo para a animação, os meus pais acharam por bem enfiar-me pela goela abaixo os clássicos da Disney - uma decisão bastante responsável, até, durante o período renascentista da animação do Grande Rato (salvé, ó Grande Rato, nosso poderoso líder). Adorei o Aladdin, o Hércules, o Toy Story (que, não sendo ainda da Disney, era distribuído por eles e está lá, junto dos Clássicos). Anteriores à Renascença, até há outros dos quais gostei bastante: o Rato Basílio, Bernardo e Bianca, 101 Dálmatas (que é, para mim, um filme obrigatório)… Se não corri todos, corri boa parte. E isso incluiu um filme com alguma importância na história da empresa: Papuça e Dentuça.

Para quem não sabe qual é a história (obviamente, este resumo contém spoilers): Uma raposa (Tod/Dentuça) fica órfã e outros animais do bosque começam a tomar conta dela. Eventualmente, a raposa é adoptada por uma velhota. Problema: a velha vive ao lado de um caçador, que tem armas e cães de caça. Um desses cães, ainda cachorro (Cooper/Papuça) torna-se melhor amigo de Tod, enquanto ainda são jovens. Eventualmente crescem, Cooper é educado como sendo apenas e só um cão de caça, que não pode ser amigo dos animais que vai matar, e a velha abandona Tod… numa reserva de caça (porque era mais seguro para a presa do que estar a viver - literalmente - ao lado do caçador).

Lembro-me de ver isto e de ter chorado bastante (foi algures entre os 5 e os 9 anos de idade). Eu cresci numa família em que a presença de um cão (e, eventualmente, de mais) era obrigatória, mas sempre com a pedagogia que se deve incluir quando há um animal de estimação: ele faz parte da família, não é abandonado nem pode ser maltratado. E estava a ver ali o oposto disso. Por muita motivação que houvesse na história para que isso acontecesse, foi doloroso ver aquilo.

O filme é adaptado de uma fábula para adultos, The Fox and The Hound, de Daniel P. Mannix, que é muito mais negra e profunda do que a versão mais aguada que a Disney exibiu nas salas. Mesmo a própria Disney acabou por fazer uma alteração ao seu plano original de adaptação deste romance para um tom mais familiar.

Foi um penso rápido, que acaba por ser simbólico para o filme e para a história dos Clássicos da animação da Disney, dado que o seu longo processo de produção marcou a transição entre a equipa de animadores que originou os estúdios e uma nova equipa de animadores (de onde constavam nomes como Brad Bird ou John Lasseter) que, eventualmente, acabou por marcar a Renascença da Disney nos anos 90, a integração da animação CGI e, eventualmente, da Pixar, com todas as mudanças que estes últimos 30 anos causaram nesta abordagem da animação infanto-juvenil: uma subida de nível no tratamento intelectual das crianças ou a escrita de diálogos (e o casting de vozes conhecidas do grande público) para incluir toda a família… com algumas sensações agridoces pelo meio. 

Mas isto é sobre mim: o filme causou-me dor durante alguns dias após tê-lo visto pela primeira vez. Já não me lembro se tive pesadelos, mas foi um filme que me marcou bastante. Tentei vê-lo uma segunda vez, ainda quando era puto, mas não deu. E fiquei com o trauma até hoje: não pego no filme há mais de 20 anos, e nem com a Disney+ lhe vou pegar. Talvez, daqui a muitos anos, quando tiver catraios a quem tenha de dar formação cívica e cinéfila. E, mesmo assim, Papuça e Dentuça não estará na lista de prioridades.

Manuel Reis já escreveu em blogs, faz podcasts e estuda Publicidade e Marketing. Vê demasiadas séries de televisão, e gosta de falar sobre elas. Podem seguir o que ele diz e faz no Twitter  ou em jaaseguir.blogs.sapo.pt.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Suores Frios - "O Nokia de Blair Witch" - por Carlos Reis

Não gosto de filmes de terror. Ou melhor, não gosto de ver filmes de terror. Entrei nesta negação quando com onze ou doze anos apanhei "O Dentista" de Brian Yuzna a passar por volta da uma da manhã na TVI e, deitado na cama, às escuras no meu quarto, fiquei a vê-lo até ao fim. Sei lá porquê. Tanta coisa melhor que me fez adormecer ao longo das últimas três décadas no sofá, na cama, na cadeira do computador, até sentado no chão com miúdos com cólicas ao colo. Mas este fiquei até ao fim. Resultado? Anos de pesadelos inexplicáveis relacionados com dentistas. Eu que até sempre gostei - e ainda gosto - de ir ao dentista. Mas naquelas noites que acordava com "suores frios", ou era o Schwarzenegger de metrelhadora e peito ao léu a disparar contra um autocarro comigo lá dentro - e sim, tive este pesadelo várias vezes, acordando em pânico no exacto momento em que era atingido -, ou vinha o ca**ão do dentista despachar-me, comigo imóvel naquele cadeirão deitado, congelado e imobilizado por um qualquer anestésico. Vieram anos e anos a comer cinema ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Nunca nada que tivesse pinta de pregar um cagaço ou outro. Nem o raio dos clássicos que todos falavam, dos Sextas-Feiras 13 ao Exorcista, dos Halloweens ao Poltergeist. Tudo muito bonito até ao momento em que me apaixonei pela minha mulher e, depois de passar o ponto de não-retorno, percebi que ela só gostava de filmes de terror. Tudo o resto adormecia em cinco minutos, fosse na sala de cinema ou em casa.

Lá tive que descobrir tudo o que tinha ficado para trás. Os clássicos, as estreias, os mais refundidos, os asiáticos, os raios que os partam. Até que chegou o dia, ou melhor, a noite, que me traz aqui. A noite em que metemos uma cassete VHS d'"O Projecto de Blair Witch". Sozinhos em casa, ali numa noite de verão durante o Euro 2004. Todos sabem do que se trata, não é preciso grandes apresentações. Remeto-vos já para a cena final. Lembram-se? Uma personagem possuída, em pé, num canto de uma casa abandonada no meio do mato, cabeça e braços para baixo. "Borrei (não literalmente, felizmente) a cueca", para não variar. Duas ou três da manhã, finito, vamos dormir: ela ri-se do que viu, eu estou tão incomodado quanto arrepiado. "Mas para que é que vejo estes filmes?", pensei uma vez mais. Fechamos os olhos, adormecemos.

Sono profundo. Uma, duas, três, sei lá quantas horas passam. Sinto movimento, oiço um barulho, descerro um dos olhos para espreitar o que se passa. O que vejo dispara-me o coração para fora do peito, como nunca antes - ou depois - na minha vida. A minha mulher (então namorada) no canto do quarto, cabeça e braços para baixo. Cabelo longo, como se fosse uma japonesa qualquer possuída do "Ringu". Caio da cama, começo aos gritos, acordo o prédio inteiro. Ela assusta-se tanto com a minha reacção quanto eu com a presença dela naquele canto. Pensei que tinha sido uma partida dela e estava pronto para a matar. Mas não, afinal tinha ido pôr um daqueles tijolos com Snakes chamados Nokias 3210 a carregar. Estava, segundo ela, há horas a fazer aquele apito irritante de bateria baixa de cinco em cinco minutos. Foi uma coincidência dos diabos - ou das bruxas, para ser mais preciso com o filme em causa. Foi o susto de uma vida. E voltei a fechar a porta ao terror. O amor também tem limites. Mais de quinze anos sem rever esta cena e, só de escrever este texto, lembro-me dela como se fosse ontem. Mas porque é que alguém vê filmes de terror? Explicam-me?

Autor do blogue Cinema Notebook: http://cinemanotebook.blogspot.com
Co-autor do podcast Nas Nalgas do Mandarim: http://nasnalgasdomandarim.pt
Co-autor dos anuários "Videoclube do Sr. Joaquim": https://www.facebook.com/SenhorJoaquim

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Suores Frios "Por entre Dois Dedos num assento de Veludo - por Tomás Agostinho

 


É curioso pensar que o carácter natural de um filme tem muito pouco a ver com a nossa relação de tensão com o mesmo. Lembro-me ainda antes de pensar em redigir este texto que as imagens que mais me assolam, que induzem medo não são necessariamente aquelas cuja natureza intrínseca o parece exigir, vulgo filme de terror. Associar um género a uma sensação, de certo modo tónica, não é atípico no cinema. As emoções básicas do ser humano encontram-se perfeitamente delineadas como respostas emocionais padrão enquadradas num determinado género – seria até estranho que assim não o fosse quando nos sentamos num determinado filme. Comédia é para rir; drama é para chorar; terror é para amedrontar. Porém é igualmente sabido que o binómio género/emoção enquanto carácter meramente dual e exclusivo é pouco expressivo. Mais interessante é um filme, à parte da sua sensação essencial, conter uma confluência de outras. É nesta fusão que se abre um espaço para as leituras não tónicas. Estas interpretações emocionais são afectadas pelo contexto do tempo e do espaço de cada pessoa que vê o filme. As obras não são apenas produtos do seu tempo; são igualmente frutos da nossa relação com as mesmas. 

Exemplo claro disto são os filmes de terror de outra época que semeavam o medo junto dos seus espectadores incautos e que hoje se oferecem mais como memórias e registos, cápsulas do tempo de técnicas narrativas e estilísticas que despoletavam essas reações. Uma outra instância destas leituras são os filmes que vincaram a nossa infância. Não falamos apenas de um elemento nostálgico que adorna as películas em visualizações futuras, mas sim de uma verdadeira memória fantasma de uma reação que não se desvincula do objecto. Tomo como exemplo pessoal e enquadrado na temática deste espaço editorial, Harry Potter and the Chamber of Secrets (2002). 

Naquela sessão da tarde, ainda no antigo cinema das Amoreiras, via o filme com a minha mãe, onde tive que lhe pedir – entre lágrimas e um eminente ataque de ansiedade – que me levasse dali para fora, voltando – decidido de o terminar e vencer o medo – ao filme após o intervalo (será que houve intervalo? – os detalhes escapam-me). Em causa, tantos anos depois, e de interesse para este texto não está apenas o carácter das cenas que me levaram a tal reação. Não é difícil entender que para uma criança de nove anos o filme contém o necessário para gerar tal resposta neuronal. Na análise deste fenómeno o mais curioso talvez seja a memória que ficou do mesmo. Tendo voltado à sala depois do intervalo, numa (semi) vã tentativa de controlar a ansiedade – digo vã, na medida em que se revelou uma tentativa infrutífera, porque apesar de aguentar até ao final, fui frequentemente assombrado pelas imagens do mesmo durante os dias seguintes –, esse esforço (a luta pelo controlo) acabou por produzir um resultado inesperado: não me lembro da segunda metade do filme, dessa primeira visualização – dir-se-ia que fui o alvo perfeito de um dos encantamentos de amnésia do professor Lockhart. A minha memória do filme tomou para si a natureza da estrutura de todas as memórias: absolutamente lacunar. Seria a caricatura das minhas rememorações cinematográficas. Espantosamente, nos anos que se seguiram e antecederam uma segunda visualização – desta vez mais controlada e “completa” – fui criando imagens fantasmas de cenas, que sei agora não existirem, de modo a preencher as lacunas narrativas da minha memória. Porém, encontrava-me firmemente convicto que existiam. Lembro-me, inclusive, de comentar que teria visto uma versão diferente do filme. E vi, na minha cabeça, com o medo como projector das imagens. Mantém-se até hoje como uma das minhas experiências mais radicais no grande ecrã, evidenciando apenas o poder do medo na manipulação da percepção do passado e na falência do controlo do presente. 


Lisboa, Setembro (sob o medo da quarentena mundial) de 2020,
Tomás Agostinho

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Suores Frios - "Ben Gardner, Pescador Zarolho" - por David Martins

Sinopse: Em Amity um tubarão branco estraga a economia local em plena época balnear. E come alguns turistas também.

Tudo o que se podia escrever sobre este portento já deve ter sido escrito nas ultimas quatro décadas, mas vamos lá. Um realizador prodigio e um filme prodígio que mudou a face do cinema moderno. Mas de todas as cenas de suspense e "susto" escolho o momento em que no destroço do barco afundado aparece a cabeça do pescador a cumprimentar o mergulhador Matt Hooper.

Mais que suor, esta cena proporcionou-me o que é conhecido pelo nome técnico de "cagaço". 

Se a minha esburacada memória me serve bem, a primeira vez que vi o filme foi algures nos anos 90, numa noite de Verão. O ecrã era uma pequena televisão a preto e branco que funcionava a bateria e já toda a gente na nossa casa na ilha estava a dormir. E foi estendido no sofá no escuro que apanhei o grande susto de ver surgir entre um rombo nas tábuas do barco de pesca os restos mortais do pescador Ben Gardner. A cabeça flutua entre as tábuas de forma sinistra, sem o olho esquerdo e a pele com um tom doentio esverdeado. Cor esverdeada, pelo menos na memória. Porque se eu pelo menos na primeira vez vi em preto e branco, a recordação da cor verde deve ter sido influencia do relato da minha mãe, que já me tinha contado que quando ela viu o filme nos anos 70 também se impressionou (acrescentou que de todo o filme só se recorda desse momento). O cinema a unir gerações. 

Andei a ver vários vídeos recentemente, e a tal cor verde tem a ver com as diferenças de color grading e condições dos vários relançamentos e remasterizações. Não continuo grande fã de filmes de terror, e provavelmente esta cena ajudou. Ironicamente, um momento tão recordado foi filmada numa piscina e acrescentada ao filme quase no final do prazo.

É um jump scare, coisa que aprendi a abominar nas décadas seguintes. Mas, segundo um video que disseca a cena no Youtube, continua a proporcionar "cagaço" em visionamentos posteriores devido à forma diferente como está estruturado dos barulhentos jump scares modernos.

Claro que depois de ter visto o filme tantas vezes, a antecipação abafa o impacto da cena, e o boneco já não parece tão impressionante. 

E as ultimas vezes que a revi foram em forma isolada no Youtube, portanto o efeito está praticamente ausente. Mas aposto que para primeiros visionamentos, o "cagaço" continua lá...

 David Martins (do CINE31

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Suores Frios - "Ter medo é coisa que não me assiste" - por Vítor Rodrigues


Tenho uma relação muito especial e invejosa com o terror. Se por um lado sei que não estou a apreciar correctamente um género cinematográfico com mérito próprio, por outro não consigo entender de todo o fascínio. Permitam então que me envergonhe...

Se eu não gosto de ser assustado na vida real, porque haveria de o querer numa sala de cinema? Porque hei-de pagar para me sentir contraído e receoso com o que aí vem? Poderão falar-me em rush de adrenalina ou até que o terror não é sinónimo de jump scares, mas ainda assim não me convencem. É então com extrema vergonha que apresento três momentos que me marcaram e cimentaram a minha convicção.

Em 1997, com 13 anos, lembro-me de ficar “cagado” com o início de Men in Black. Sim, a comédia com Will Smith (eu não disse que vinha aqui envergonhar-me?!). A verdade é que aquela cena inicial em que um alien “caça” Tommy Lee Jones deixou-me apreensivo até quase meio do filme, receando o que aí pudesse vir. Aos 15 aventurei-me “à séria” com o género e vi o Projecto Blair Witch. Único filme que vi no velhinho XXX, e dos poucos que tive de me sentar na zona lateral da sala, por esta estar já tão lotada. Lembrem-se que esta é uma altura pré-internet, logo, tudo o que eu estou a ver é “real”! Saí daquela sala perfeitamente convencido que tinha visto um documentário. A imagem final, em que a camêra cai e um dos jovens está virado para o canto da sala ficará gravado na minha memória para todo o sempre.

O meu último exemplo é o mal amado Signs de 2002, com Mel Gibson e Joaquin Phoenix. Poderia escolher várias cenas de tensão em campos de milho ou o final na casa, mas a cena que mais me marcou é a de um noticiário, em que é reproduzido um video amador do Brasil e do nada surge um alien. Apanhou-me tão despercebido que me encheu de medo. Não de susto, mas de medo.



Estes exemplos completamente lights fizeram-me perceber que não tinha nem mãozinhas nem palato para terror valente. Uma grande parte de mim tem ainda um preconceito real com o género que não consigo afastar. Há uma pobreza de ideias revolucionárias e recurso a artimanhas repetitivas em argumentos fracos que usam o terror como muleta, em vez de uma característica secundária. Consciente que falo de certeza do alto pedestal da ignorância, mas ainda assim, é o meu pedestal.

Aos 36 já podia ganhar vergonha na cara e ver umas obras primas. Afinal de contas, quando vi o Exorcista, anos depois de todos os meus amigos, encontrei mais comédia que terror. Men in Black é agora pura comédia e Blair Witch perdeu o “encanto” depois de perceber que era tudo mentira. Talvez um palato mais maduro me fizesse despertar para novas sensações... mas, tenho medo...

O Vítor escreve umas coisas no Vida em Série e no Séries da TV e pode ser encontrado no Twitter a pastar...

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Suores Frios - "A mão que embala o medo" - por António Araújo


Carrie, realizado por Brian De Palma em 1976 segundo adaptação de Lawrence D. Cohen do primeiro romance de Stephen King, conta a história de Carrie White, uma jovem tímida e inadaptada, gozada pelas colegas e aterrorizada pela mãe fanática religiosa, que descobre ter poderes telecinéticos, o que vem a dar muito jeito quando é vítima de uma elaborada e cruel piada à frente da escola toda na noite do baile de finalistas. No meu caso, quem me aterrorizava era a minha tia, também religiosa, se bem que não tão fanática, censurando-me a cada oportunidade na sua convivência constante na nossa casa. Porém, nos fins-de-semana em que dormia em casa da minha tia, por certo para aliviar os meus pais de ter de aturar uma criatura menor de idade cujo único sonho parecia ser o desejo impossível de ter um videogravador de cassetes VHS, testemunhava uma milagrosa e radical transformação: o demónio implicativo que conhecia durante a semana mutava-se nestas alturas em santa permissiva, aproveitando eu para ver todos os filmes que passavam na televisão tarde e a más horas, e que os meus pais nunca me teriam deixado ver. Foi assim que o meu destino se cruzou com o de Carrie.
Assisti tenso e com uma falsa sensação de segurança dada pelas mantas puxadas até aos olhos a raparigas adolescentes despidas, bullying, menstruações — o suficiente para afligir de mil e uma formas qualquer pubescente —, e, menos problemático, matricídio por empalamento com tesouras e facas pelo poder da mente, além de chacina generalizada de toda uma escola. Depois de sobreviver à atribulada jornada, com o fim do filme à vista e profundamente orgulhoso da minha coragem, a minha ingenuidade foi-me roubada que nem tapete puxado à traição debaixo dos pés. Quando a arrependida Sue deposita flores na campa de Carrie, aquela ensanguentada mão que desponta pelo meio das pedras abalou o meu íntimo e traumatizou-me profundamente. Durante semanas, senti calafrios só de pensar naquele momento. O escuro passou a ser um traiçoeiro companheiro, potencialmente camuflando Carrie, escondida à espera para me agarrar ao virar da esquina. O corredor minúsculo da minha casa, que me levava da sala à casa de banho, com o interruptor apenas numa das pontas, passou a assistir a correrias desenfreadas pela vida de um miúdo amedrontado pelo espectro daquela cena. Foi esse o momento do meu primeiro contacto com finais-choque (ou twists finais, para ser mais moderno), o que não só me preparou para a restante filmografia de De Palma como para a obra de outro autor meu favorito descoberto pela mesma altura: John Carpenter. Nada mais foi como dantes. Passei a desconfiar e a questionar o que via na tela, em constante expectativa pela possibilidade de poder ser abalado por um filme, por muito que isso me pudesse assustar. O cinema, desde aí, passou a envolver alguma dose de perigo, e  essa experiência, não a trocaria por mais nada.

O António Araújo é um cinéfilo com pretensões artísticas, mas talento reduzido (palavras do próprio, não minhas!), que se mascara de consultor de sistemas de informação durante o dia para se revelar à noite como apaixonado podcaster. É autor do Segundo Take e co-autor do Universos Paralelos, que podem ser ambos encontrados em www.segundotake.com. Colabora também com a Take Cinema Magazine (https://take.com.pt) onde é redactor e editor-adjunto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Suores Frios - "Pesadelo no Videoclube" - por Carla Rodrigues


No início dos anos 90, eu era uma miúda assustadiça, com uma imaginação muito viva e, por isso, com facilidade em extrapolar da ficção para a realidade uma série de cenários aterrorizantes. Fugia de tudo o que fosse minimamente inquietante ou assustador. Nessa altura, havia um videoclube perto de casa dos meus avós no qual passava muito tempo. Fiz-me sócia e sempre que podia, alugava filmes. Quando não podia, vagueava pelas prateleiras, admirava as capas, jogava Mega Drive e apanhava bocados dos filmes que passavam na TV do videoclube. Era normal terem sempre um filme a rolar, para suscitar a curiosidade de quem lá entrava e, quem sabe, potenciar o aluguer. Neste belo dia em que lá fui, estava a dar um filme que me marcou para sempre.
O filme era nada mais, nada menos que Pesadelo em Elm Street. Uma escolha estranha para dar, de tarde, num videoclube que era frequentado por miúdos à caça dos filmes das Tartarugas Ninja ou apenas à procura de poderem jogar mais um nível do Sonic. O clássico de Wes Craven apresenta-nos um grupo de amigos adolescentes que, um por um, sucumbem aos ataques de um louco que os persegue em sonhos com uma luva tunning na qual cada dedo é encabeçado por uma faca. 
Fui roubando olhares ao ecrã. O filme estava mesmo no início. Comecei a desconfiar que não ia sair dali nada de bom porque, logo na sequência inicial, havia um excesso deplorável de facas. Aparece uma rapariga, perdida numa sala de caldeira, cheia de vapores estranhos, corredores labirínticos, com um tipo estranho atrás dela. Ela não devia estar ali. E eu não devia estar a ver aquilo. Afinal, parece que era só um pesadelo que a rapariga estava a ter. O filme entra numa parte de maior calma. Mas cai a noite outra vez. E lá aparece a rapariga perdida, a ser perseguida pelo louco das facas. Desta vez, vemo-lo melhor. Estão os dois num beco. Ele segue-a, devagar, a rir-se. Os braços dele alongam-se, expandem, tocam nas paredes do beco. As facas da mão direita fazem faísca na parede. 
 
Aqui, eu estava colada ao ecrã, a sentir aquele pânico surdo que nos invade a alma e que nos torna incapazes de sair do sítio. A cena só piora – a rapariga não consegue fugir e é prontamente vindimada pelo gajo das facas. Percebemos que a morte no sonho representa a morte na vida real com uma das mais marcantes cenas do cinema de terror. No quarto onde dormia, vemos a rapariga ser arrastada por uma força invisível, que a puxa parede acima, parece abaixo, pelo tecto, enquanto lhe vão surgindo golpes no corpo, infligidos por essa mesma força invisível. 
Não sei como é que me consegui descolar do chão. Mas mal me consegui mexer, saí porta fora do videoclube sem olhar para trás e não parei enquanto não cheguei a casa. Esta sequência marcou-me para sempre - e estranhamente, mais do que a violência de toda a cena, o que ficou comigo foram os braços a esticar, as facas a fazerem faísca na parede, e o riso sinistro de um louco de rosto queimado que aparecia nos sonhos das pessoas. Tive pesadelos durante semanas e tive tanto medo que não vi filmes de terror durante vários anos. 
Eventualmente, comprei e vi todos os filmes da saga Pesadelo em Elm Street, que é de longe o meu franchise favorito de entre os três grandes franchises do terror. É a saga mais criativa e arrojada – nem todos os filmes são bons, é certo, mas são sempre divertidos e com ideias que, apesar de nem sempre resultarem, são audazes. O original é o melhor - um filme de terror com uma originalidade e um atrevimento brilhantes. É sagaz, afiado como as lâminas da luva do Freddy Krueger. Aterrorizou-me quando era criança, mas deixou a semente de um grande amor pelo género de terror e, por isso, estarei para sempre grata. 


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Suores Frios - "Rosemary’s Baby, Ou O Cinema de Terror Como Exploração do Quotidiano" - por David Lourenço


O cinema de terror sempre foi, para mim, um campo fértil em ideias, no qual se consegue abordar qualquer assunto com criatividade. Não raras vezes, é um género subestimado e visto como alienante, pela violência ou pelo esoterismo de algumas histórias, mas, quando é bem feito, o cinema de terror pode ser um reflexo distorcido de aspetos da nossa sociedade, como um espalho convexo que realça certas formas da(s) realidade(s) que conhecemos. Um dos filmes que me tornou mais consciente das possibilidades do género foi Rosemary’s Baby.


Inserido numa trilogia não oficial de Roman Polanski (com apartamentos citadinos como cenário central da ação), a personagem principal passa por uma gravidez particularmente difícil; o filme utiliza o satanismo como metáfora dos poderes ocultos que controlam as mais diversas áreas (nunca me esqueço de como o marido tenta convencer Rosemary a abdicar do bebé recém-nascido para serem recompensados com oportunidades). Os sinais de perigo vêm do comportamento estranho dos vizinhos e da arquitetura hostil dos blocos residenciais, isto é, de uma apresentação subversiva de aspetos do nosso quotidiano, dos quais não desconfiamos ou não queremos desconfiar.

Aos poucos, Polanski questiona tudo na experiência da vida urbana, nomeadamente o lugar da mulher moderna. Rosemary é violada, a sua sanidade é posta em causa e, no fim, aceita que não consegue remar sozinha contra o estado das coisas e acaba a baloiçar o berço de um bebé que, afinal, é o filho do Diabo. Nem a maternidade é sagrada no mundo contemporâneo – aliás, o momento da conceção é a cena mais surreal de todo o filme.

Por tudo isto, continuo a adorar o cinema de terror, e, como este exemplo demonstra, qualquer filme, independentemente do género, pode ser uma referência cultural de relevo.

David Lourenço
O Narrador Subjectivo (2011 – 2017)
https://onarradorsubjectivo.blogspot.com/
Tarkovsky Wannabe (2017 – Presente)
https://www.instagram.com/tarkovskywannabe/

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Suores Frios – "A barata diz que tem (Pesadelo em El Street 4)" - por Miguel Ferreira


Curiosidade. É a curiosidade que melhor descreve e ensopa o meu cinema de cachopo. A magia do proibido sempre me inquietou. Tinha de saber, alguém tinha de me contar. E se por um lado os meus pais eram incansáveis timoneiros neste meu deslumbre, por outro tinham regras e linhas muito bem definidas. Um filme para maiores de 16, era um filme para maiores de 16. Mostra lá o BI. Pois. Nada feito. Foi assim que no alto dos meus dez anos sabia tudo o que tinha acontecido em “O Silêncio dos Inocentes”.  De trás para a frente, porque tinha ouvido a história, feito perguntas, uma e outra vez. Tive um filme, ali naquela narração paternal cheia de emoção, terror, energia, que só materializei anos mais tarde. Eram obras imaginadas, em constante crescimento, aguardando o dia em que, juntamente com outras borbulhas, passariam a ser uma realidade. Porém, estes embargos cinéfilos, eram por vezes contornados: em casa de compinchas as leis eram outras, as cassetes também. Um dos meus grandes amigos era doidinho por terror e não tinha as minhas restrições em relação à faixa etária: predador, omen, mosca um, mosca dois, ia tudo a eito. E foi numa dessas tardes, no início dos anos 90, que em casa dele passava o “Pesadelo em Elm Street 4”.


A cena. A cena é muito simples. Uma rapariga está a treinar. Deitada num daqueles bancos de ginásio, empurrando a barra para cima, segurando para baixo. Unhas pintadas, cabelo com volume de aulas de ginástica em VHS. A música flui, até que duas mãos prendem o movimento. Uma figura de chapéu, cara queimada e camisola às riscas empurra a barra para baixo até os braços da rapariga estalarem e rasgarem na zona dos cotovelos. Os antebraços ficam bambos e na ferida aberta começa a crescer algo. Na carne antiga surge uma nova. Enquanto se levanta e foge da criatura a nossa heroína vê os seus apêndices trocados por patas de inseto, enormes, desproporcionais. No desespero e na fuga o quarto forrado a jornais dá lugar a um estranho túnel, luzes mais amarelas, mais pestilentas. Entretanto escorrega e cai de cara numa poça amarela, numa cola que a agarra. Ela grita e tenta descolar o rosto, mas ao puxar a cabeça a pele fica. Sai como se fosse uma máscara. A transformação estava quase completa: tronco e cabeça de barata, pernas humanas. Um conjunto indefinido e disforme, preso num movimento mudo, num pedido de ajuda. Mudamos de perspetiva e vemos que ela se encontra numa pequena caixa, nas mãos daquele sinistro vilão, que a esmigalha com escárnio, libertando mais uma catrefada de viscosidades. É isto, e eu ali, de pé, ao lado do sofá, imóvel. Impressionado, arrepiado. A perceber que tinha acabado de ver algo, que não só nunca tinha visto, como nunca mais me ia largar.


Sonhos. Não deixa de ser irónico, um real pesadelo a amedrontar-me os carneirinhos. Um terror de outrem convertido num medo próprio. Ao longo dos anos fui fazendo os meus sustos e regando o que é hoje um dos meus géneros favoritos. Porém, só muito recentemente é que voltei a Elm Street. O original de Wes Craven (1984) apresentava-nos Freddy Krueger, uma figura deformada, vingativa e sádica, que vinha atrás de nós durante os sonhos. Deu origem a oito sequelas, incluindo um crossover com a saga “Sexta-Feira 13” e um remake (aborrecidíssimo) para as novas gerações. Vi os cinco primeiros, “O Novo Pesadelo de Freddy Krueger” e o “Never Sleep Again: The Elm Street Legacy”, excelente documentário que varre duma ponta a outra a mitologia. Chegar a “Pesadelo em Elm Street 4”, do meu querido Renny Harlin, e rever, agora com enquadramento, esta cena é como terminar um quadro. Uma última pincelada, a última linha antes de fechar e encostar o livro no colo. E apesar de achar tudo um pouco mais colorido, com deliciosas e míticas deixas de Krueger, o terror continua lá. O terror que hoje assumo como fundação: a claustrofobia, o crescendo, a construção, a carne. Os efeitos práticos, a marcar passo e a ditar todo um imaginário. Apesar de hoje o meu amigo já não gostar tanto do género. Apesar de a criatividade da morte se ter encostado a sagas como o “O Último Destino” ou “Saw”. Apesar, apesar, apesar, há algo que permanece. Nesta dicotomia do sonho e do real, da ficção e da vida. Debbie, a tal rapariga que acaba transformada numa barata, diz logo no início da cena a Freddy que não acredita nele. Às vezes precisamos de ser relembrados, que eles, por outro lado acreditam em nós, e que o nosso cinema está sempre lá, à nossa espera. Obrigado à Rita por este convite e por este regresso.

Miguel Ferreira
Blogue Créditos Finais http://creditos-finais.blogspot.com/
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e Videoclube do Sr. Joaquim https://www.facebook.com/SenhorJoaquim/

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Suores Frios - "Anticristo – ou de como a depressão cinéfila pode ser um filme", por Samuel Andrade


Quando me foi proposto invocar um filme que, de algum modo, me tivesse causado singular impressão física após a sua visualização, nunca imaginei que tal tarefa se apresentasse tão custosa. Talvez por não ser, desde os meus “verdes anos”, pessoa particularmente impressionável por imagens em movimento projectadas no grande ecrã (“it's only a movie”, tal como Hitchcock bem ajuizava), não fui capaz, durante imenso tempo, de nomear um título que – e citando o repto do “convite” – “contenha um momento que te fez tremer, ter pesadelos, ou de que não conseguiste parar de pensar durante os dias seguintes ou, se fores mais para o “forte” te desconcertou”.

Honesta e curiosamente, na minha vida, tais sensações pareceram provir apenas de experiências televisivas: a saber, V (mini-série de terror e ficção científica, exibida em meados da década de 80) e as primeiras temporadas de Twin Peaks. De resto, o horror cinematográfico raramente me suscitou um inesquecível assomo de “agitação física”; obras como O Exorcista (The Exorcist) ou História de Duas Irmãs (Janghwa, Hongryeon) estão, definitivamente, entre os meus eleitos do género, todavia são filmes que me perturbam mais pelo teor implícito que revelam do que pelo seu grafismo.

Mas, de facto, e na minha idade adulta, há um filme que toca a (má) reacção pós-visionamento: Anticristo (Antichrist), de Lars von Trier. Saído do Festival de Cannes 2009 envolto em acalorada polémica, e o fruto da luta do realizador contra uma depressão que quase o incapacitou de trabalhar, Anticristo é veículo de terror – psicológico e sobrenatural – apropriadamente sombrio e grotesco, e um alvo fácil de escândalo mediático pela misoginia intensa e violência gráfica que patenteia.

Desde a sua sequência inicial, percebemos que von Trier não poupa nada nem ninguém. Filmada em extremo slow motion, somos confrontados com o êxtase de uma cena de sexo entre o casal protagonista (Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, aqui somente designados como Ele e Ela), um momento de “distracção” durante o qual o bebé do casal cai, fatalmente, de uma janela aberta. Crivada pela mágoa, Ela sucumbe a profunda depressão, responsabilizando-se pela perda e encarando a calma do marido como insensibilidade. Ele, um terapeuta experiente, decide assumir o tratamento da esposa e, durante este processo, decide que a viagem a uma cabana isolada — apelidada de Éden — no meio da floresta ajudará à sua recuperação psicológica.

Assiste-se, de seguida, ao definitivo confronto físico e espiritual entre o casal que, rapidamente, evolui para a violência conjugal impiedosa, para um horror de índole realista e no sentido de uma “estética da agressão” que, na raia da pornografia, leva ao extremo a dicotomia sexo/morte.

A sua conclusão, de toada incerta e algo mística, apela sobremaneira à interpretação do espectador. Tenha sido por "o caos reinar", pelo subtexto(?) ou simplesmente pela violência, enfrentei um longo e profundo sentimento de mal estar: o filme não só me obrigou a desviar o olhar (lembram-se de não ser habitualmente impressionável?) perante “aquela” auto-mutilação da protagonista, como também me infundiu de uma depressão que se instalou nos dias seguintes, durante os quais, para o bem e para o mal, o filme simplesmente não me saiu do pensamento.


Samuel Andrade
filmSPOT (https://filmspot.pt/) & À Pala de Walsh (http://www.apaladewalsh.com)

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Suores Frios - Um Lobisomem Americano em Londres (An American Werewolf in London, John Landis, 1981) - por José Carlos Maltez


Muito do que é o meu gosto pelo cinema foi alimentado pelo facto de haver a 50 metros da casa dos meus pais um daqueles antigos cineteatros que animavam os arredores de Lisboa, e onde todos os filmes mais bem-sucedidos chegavam, com o devido atraso que podia ser de semanas ou até meses, como era comum no início dos anos 80, antes da explosão do fenómeno videoclubístico.

O cinema era tão perto que eu (no início acompanhado, nas sessões de domingo de manhã ou sábado à tarde), atingida a avançada idade de 7 anos, já ia sozinho. Era só arranjar uma ou duas moedinhas para o bilhete, e às vezes nem era preciso escolher o filme, era o que lá estivesse: animação, aventura, acção, comédia. Até que, já quase adulto, com os meus 10 ou 11 anos, comecei também a ir à noite, para filmes que não eram só para a criançada.

Com essa idade, o terror não era um género que eu consumisse, mas a ideia de que pode haver emoções tão fortes que nos fazem saltar da cadeira era algo que tinha de ser testado. Foi isso que fiz, acompanhado de um primo ainda mais novo que eu, quando vi que "Um Lobisomem Americano em Londres" de John Landis tinha acabado de chegar. O filme era vendido como um produto bem-disposto, de efeitos especiais revolucionários, portanto, que hesitação havia?

Fomos à sessão das 21:30, e só ao comprar os bilhetes vimos nos cartazes a nota “maiores de 16 anos”. Entreolhámo-nos receosos, e dirigimo-nos ao porteiro como que tentando esconder-nos um atrás do outro, mas ele nem piscou. E entrámos triunfantes.

Adorámos o filme, é certo – para quem não sabe: é a história de dois jovens americanos a viajar de mochila às costas pelo interior de Inglaterra, que são atacados por algo numa noite de lua cheia, um morre e o outro fica ferido, passando a receber visitas do amigo morto que lhe diz que se irá transformar num lobisomem, coisa que realmente virá a acontecer. Tive de desviar o olhar nalgumas cenas, como as visitas ao hospital do amigo em decomposição; os pesadelos violentos e sangrentos; e… as penosas e minuciosas metamorfoses. Nunca tinha visto nada assim, e as mazelas não ficaram por aí. Como conversámos no dia seguinte, nenhum de nós pregou olho, e vimos bicharada peluda e muito dentada a aparecer-nos pelos quartos a noite toda.

Tal nunca me demoveu, antes pelo contrário. O terror, pela capacidade de gerar este tipo de emoções, e pelo seu carácter tão fantasista que é talvez o género cinematográfico que mais se aproxima dos antigos contos de fadas, tornou-se sempre uma refeição presente na minha dieta de cinéfilo.
Os sustos vão aparecendo aqui e ali, e lembro-me de ter ficado incomodado quando, por essa altura, vi, na TV,  "The Haunting" de Robert Wise, com o qual percebi o poder do que não se mostra. Ver, poucos anos mais tarde, "O Exorcista" (com uma irmã pequenina a dormir no quarto ao lado), ou o "Silêncio dos Inocentes", com aquele papel impressionante de Anthony Hopkins, também deixou marca. Mas não há susto como o primeiro, e o filme de John Landis ficou para sempre no meu panteão.

Recentemente, a propósito de um ciclo para o meu blogue "A Janela Encantada", revi o filme. Obviamente, desta vez não me tirou o sono, e não tive de fechar os olhos em nenhuma das cenas. Mas, esforçando-me para voltar a vê-lo com os meus 12 anos, pude perceber que o filme ainda se aguenta muito bem. Já com outro olhar pude reparar ainda no modo como ele presta homenagem ao ambiente que se tornou icónico nos filmes clássicos da Hammer, os quais foram os responsáveis pelo nascimento do meu blogue, e se calhar razão pela qual estou aqui a escrever. Há círculos muito curiosos.

José Carlos Maltez
Autor do blogue A Janela Encantada
https://ajanelaencantada.wordpress.com/
Colaborador e editor-adjunto da revista Take Cinema Magazine
www.take.com.pt
Co-autor do podcast Universos Paralelos
www.segundotake.com/universos-paralelos

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Suores Frios - "Terrores Adolescentes" - por Inês Moreira Santos


Seis amigas aventureiras reúnem-se para explorar uma gruta remota nos montes Apalaches. Algo corre mal e ficam encurraladas. Para além da luta para encontrar uma saída, terão ainda de conviver com uns seres esfomeados que habitam as profundezas do local.

Comecei a ver filmes de terror com frequência por influência da minha melhor amiga, teríamos nós 12 anos. Os pais delas eram sócios de um videoclube (bons velhos tempos...) e estávamos lá nós batidas, de quando em quando, a alugar um filme - normalmente de terror. Um pouco mais velha, comecei a vê-los também no cinema, a maioria das vezes sem saber bem ao que ia, já que a Internet ainda escasseava. Aí já era o meu primo o responsável pelas escolhas mais assustadoras. Tínhamos o costume de ir num grupo de quatro ou cinco adolescentes que só queriam Cinema como forma de espairecer e distrair, um escape da realidade por uma hora e meia ou duas. Não estávamos muito interessados com a qualidade para além do entretenimento.

Para a presente rubrica, escolhi um filme que vi numa destas incursões ao cinema do Colombo com o primo e três amigos, numa sessão da noite. A Descida (The Descent ) estava em cartaz e tínhamos "ouvido falar bem", para além da sinopse ser convidativa: um grupo de raparigas numa gruta com criaturas assustadoras pelo meio, parecia-nos bem.

Saímos da sala estarrecidos, revoltados, não gostámos. Não gostámos dos saltos que demos das cadeiras, lá escondidos na última fila da sala, não gostámos de ter de esconder a cara com o pacote de pipocas sempre que havia a eminência de um daqueles bichos (uma espécie de orcs albinos, como os baptizei) aparecer de repente e comer uma das raparigas (ou saltar do ecrã e nos comer a nós?!), não gostámos do grito mudo de pânico que demos quando um deles ficou visível pela primeira vez, não gostámos de nenhuma das sensações que nos atormentaram dentro da sala de cinema.

Ainda hoje, e sendo quase consensual que A Descida é um dos melhores filmes de terror dos últimos 20 anos, continuo a ter alguma repulsa por esse título, e o sentimento é comum a quem me acompanhou a essa sessão, há cerca de 15 anos. Causou um belo trauma naqueles jovens que ainda cheiravam a pó talco. E, curiosamente, não me parece que alguma vez me vá reconciliar com o dito filme. O que vale é que o mundo cinematográfico em geral, e o género de terror em particular, está longe de se esgotar naquela gruta (ou naquela sala de cinema). E nós aprendemos a gostar de ter medo deste tipo de ficção, seja na sala de cinema ou na de casa.


Inês Moreira Santos
Divulgadora cultural e Autora do blog  Hoje Vi(vi) um Filme, sobre cinema, televisão e, principalmente, onde partilha o amor pela Sétima Arte. Nascida em 1988, em Lisboa, licenciou-se em Ciências da Comunicação. Apaixonada por Cinema e pela Escrita, viu no Hoje Vi(vi) um Filme a melhor forma de aliar as duas paixão.
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