Carrie, realizado por Brian De Palma em 1976 segundo adaptação de Lawrence D. Cohen do primeiro romance de Stephen King, conta a história de Carrie White, uma jovem tímida e inadaptada, gozada pelas colegas e aterrorizada pela mãe fanática religiosa, que descobre ter poderes telecinéticos, o que vem a dar muito jeito quando é vítima de uma elaborada e cruel piada à frente da escola toda na noite do baile de finalistas. No meu caso, quem me aterrorizava era a minha tia, também religiosa, se bem que não tão fanática, censurando-me a cada oportunidade na sua convivência constante na nossa casa. Porém, nos fins-de-semana em que dormia em casa da minha tia, por certo para aliviar os meus pais de ter de aturar uma criatura menor de idade cujo único sonho parecia ser o desejo impossível de ter um videogravador de cassetes VHS, testemunhava uma milagrosa e radical transformação: o demónio implicativo que conhecia durante a semana mutava-se nestas alturas em santa permissiva, aproveitando eu para ver todos os filmes que passavam na televisão tarde e a más horas, e que os meus pais nunca me teriam deixado ver. Foi assim que o meu destino se cruzou com o de Carrie.
Assisti tenso e com uma falsa sensação de segurança dada pelas mantas puxadas até aos olhos a raparigas adolescentes despidas, bullying, menstruações — o suficiente para afligir de mil e uma formas qualquer pubescente —, e, menos problemático, matricídio por empalamento com tesouras e facas pelo poder da mente, além de chacina generalizada de toda uma escola. Depois de sobreviver à atribulada jornada, com o fim do filme à vista e profundamente orgulhoso da minha coragem, a minha ingenuidade foi-me roubada que nem tapete puxado à traição debaixo dos pés. Quando a arrependida Sue deposita flores na campa de Carrie, aquela ensanguentada mão que desponta pelo meio das pedras abalou o meu íntimo e traumatizou-me profundamente. Durante semanas, senti calafrios só de pensar naquele momento. O escuro passou a ser um traiçoeiro companheiro, potencialmente camuflando Carrie, escondida à espera para me agarrar ao virar da esquina. O corredor minúsculo da minha casa, que me levava da sala à casa de banho, com o interruptor apenas numa das pontas, passou a assistir a correrias desenfreadas pela vida de um miúdo amedrontado pelo espectro daquela cena. Foi esse o momento do meu primeiro contacto com finais-choque (ou twists finais, para ser mais moderno), o que não só me preparou para a restante filmografia de De Palma como para a obra de outro autor meu favorito descoberto pela mesma altura: John Carpenter. Nada mais foi como dantes. Passei a desconfiar e a questionar o que via na tela, em constante expectativa pela possibilidade de poder ser abalado por um filme, por muito que isso me pudesse assustar. O cinema, desde aí, passou a envolver alguma dose de perigo, e essa experiência, não a trocaria por mais nada.
O António Araújo é um cinéfilo com pretensões artísticas, mas talento reduzido (palavras do próprio, não minhas!), que se mascara de consultor de sistemas de informação durante o dia para se revelar à noite como apaixonado podcaster. É autor do Segundo Take e co-autor do Universos Paralelos, que podem ser ambos encontrados em www.segundotake.com. Colabora também com a Take Cinema Magazine (https://take.com.pt) onde é redactor e editor-adjunto.
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