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quinta-feira, 18 de junho de 2020

“Ramen Shop” (Lamen teh, 2018)


Cidade de Takasaki. Um restaurante familiar de ramen. Masato (Takumi Saito) lamenta-se por o pai distante Kazuo (Tsuyoshi Ihara), dedicar-se mais à comida que a ele. Quem lhe dera ser uma taça de ramen. Antes de termos compreendido a complexidade da relação entre pai e filho, Kazuo é encontrado morto. Masato aproveita para abrir uma velha mala de viagem que desbrava caminho ao redescobrir do passado: fotografias da infância e um velho diário da sua mãe singapurense escrito em Mandarim. A correspondência com Miki (Seiko Matsuda), uma blogger de comida japonesa sediada na cidade-estado, precipita o resto. Em menos de nada, Masato está no país que o viu nascer, mas que ficou no passado, com a morte da sua mãe. Lá, descobre um tio com um amor pela comida tão profundo quanto ele e a dor de uma desavença antiga com uma avó que não conhecia.

“Ramen Shop” é uma carta de amor à família e à multiculturalidade. Acompanhamos Masato, numa senda de descoberta de si próprio e dos seus ascendentes, que trilha os caminhos que eles percorreram e experimenta as receitas que ele, como chef, desconhece, apesar da sua dupla etnicidade. Nuns breves 90 minutos aprendemos receitas da comida japonesa e de Singapura, e ainda um pouco da história da cidade-estado, incluindo o doloroso passado de ocupação japonesa. É um mix de “Who do you think who you are?” com um qualquer programa genérico de comida local, em que pessoas e locais se confundem com as receitas que nos apresentam, de modo inofensivo. Mais depressa um programa de comida de um food channel que um programa de conversa desgarrada de um Anthony Bourdain (RIP) e, admita-se, muito menos interessante. As iguarias deliciosas preparadas por Masato e companhia são merecedoras da hashtag #foodporn num qualquer instagram e a passagem pelas paisagens naturais, cidades e monumentos – por vezes senti-me dentro de um documentário –, no Japão e em Singapura são interessantes e mais cativantes que o drama familiar no coração de “Ramen Shop”, mas ilustram bem o fervilhão de ideias, cores e sabores que constituem a identidade do jovem chef.

O título original “Lamen Teh”, que se perde na tradução, é precisamente a fusão do ramen, um prato japonês de origem chinesa, com o prato de Singapura “Bak kut teh” com o qual Masato fica obcecado. De alguma forma, o recriar perfeito deste prato transporta Masato para momentos mais felizes, tempos em que cozinhava com a mãe e o seu pai tinha ainda a capacidade de se conectar com outros seres humanos.
Quis o destino que num destes dias, em que o movimento “Black Lives Matter” faz soar um grito que é ouvido em quase todo o mundo com efeitos que só veremos daqui a uns meses, quiçá anos, – não tenho a ilusão de pensar que 500 anos de opressão possam ser resolvidos num momento de claridade –, visse um filme que celebra as diferenças. “Ramen Shop” é triste mas ótimista, um feel good movie, se quiserem. Pretende deixar aquele sentimento quentinho e felpudo nos corações de quem o vê, designadamente, de apreciar o que temos e a nossa família como se os problemas familiares pudessem ser resolvidos no tempo de preparação de uma receita tradicional. Os diálogos e os flashbacks, que nem sempre são óbvios, inclinam-se de modo vertiginoso para o território da novela mas salvam-se pela característica de quase-documentário que a película tem. A cada momento que vamos apontar uma crítica… “olha aquela paisagem bonita!”, “Aquele ramen está-me a abrir o apetite!”. Truques de prestigidação preparados pela mão hábil do realizador Eric Khoo, natural de Singapura e que sabe, portanto, onde e quando desviar o olhar dos aspectos menos bem conseguidos de “Ramen Shop”. Até ia dizer que não é memorável mas, raios, se não me apetece agora comer um ramen! Duas estrelas e meia.

A Films4You anunciou a estreia de “Ramen Shop” nos cinemas nacionais a 25 de junho. Aproveitem para desconfinar a vista e, se der, por que não, o palato.

Realização: Eric Khoo
Argumento: Fong Cheng Tan e Kim Hoh Wong
Takumi Saito como Masato
Jeanette Aw como Avó
Mark Lee como Wee
Beatrice Chien como Mei Lian
Tsuyoshi Ihara como Kazuo
Tetsuya Bessho como Akio
Seiko Matsuda como Miki

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

"Blood Curse" (Coisa Ruim, 2006)



Ah, como é bom o sonho de ter uma grande casa no campo e viver o resto dos dias na paz e no sossego em comunhão com a natureza. Para a família Monteiro esta premissa não é inteiramente verdade nem é, se calhar, verdade para a maioria dos seus elementos. Xavier (Adriano Luz) um professor universitário decide mudar-se com a mulher, os filhos e um neto, para uma aldeia, no município português de Seia, após descobrir ser o único herdeiro de um tio afastado. Esta mudança constitui para ele uma oportunidade já a pensar na reforma e de se libertar da azafama da capital lisboeta. A mulher Helena (Manuela Couto) apoia-o com algumas reservas. Os filhos é que não parecem estar muito contentes com a falta de acesso ao mundo exterior, em particular, o filho mais velho Rui (José Afonso Pimentel). Sofia (Sara Carinhas), a filha adolescente é já mãe de um bebé, do qual recusa identificar a identidade paternal e aparenta uma maior resignação, preferindo passar despercebida.


A família Monteiro descobre com alguma rapidez que ao herdar a casa estão a herdar também os seus fantasmas, que as gentes da terra alimentam com o habitual mix de folclore com religião temente a Deus. Isto é uma delícia para a mente cientifica de Xavier que apesar de céptica deseja sorver todas as histórias a seu redor. Já Helena começa a ficar cada vez mais reticente quanto à mudança dado que as histórias, sobretudo as que são contadas pelos caçadores e pelo padre da terra começam a confundir-se com eventos estranhos na casa que agora habitam. Esses eventos consistem sobretudo ruídos e outros indícios que podem ter explicações mais terrenas pelo que a aceitação de uma assombração pela família é um pouco complicada de aceitar. Necessitavam sem dúvida mais uma ou duas sequências dessa natureza para reforçar a crença do sobrenatural.
“Blood Curse” aborda motivos comuns nas histórias de casas assombradas, o pai que arrasta uma família relutante para um local para onde não quer ir; uma atitude estranha por parte dos locais; acontecimentos estranhos que dividem a família; a profunda divisão no que toca a permanecer no local em que se investiu ou regressar à proveniência; a dicotomia ciência vs. folclore/religião, entre outros. As interações desta família disfuncional são talvez um pouco mais cuidadas e escapam aos vícios da escrita-preguiça, como a existência de um trauma relacionado com uma morte na família ou um divórcio. A família Monteiro tem isso sim, um grave problema de comunicação. Existe um pacto de silêncio implícito no que se refere à gravidez da filha do meio, fazendo aparentar a quem esteja no exterior a observá-los que reina a paz no seu seio. Existe uma alusão à possibilidade de incesto, mas esta é rápida e nunca volta a surgir deixando a resposta para a nossa imaginação embora, em certos casos é preferível deixar algumas pedras por revirar.
O filme tem uma qualidade onírica que é enfatizada pela câmara desfocada umas quantas vezes a mais para ser mero descuido, tentando talvez significar o cruzamento da realidade com a história da casa e, na verdade, daquela localidade. Essa qualidade é depois desfeita sem cerimónia num final apressado e, a bem dizer, atabalhoado, onde é gritante o parco orçamento. Além disso, volta a reforçar o filme junto dos seus conterrâneos com todos os clichés que isso implica. Mais uma vez o drama humano é relegado para segundo plano dando lugar a um final insatisfatório, mas mais convencional.
As maiores virtudes de “Blood Curse” residem em deixar a natureza da assombração deliberadamente vaga quase até ao final dos seus parcos 97 minutos e no facto de não insistir nos sustos de sobressaltos repentinos. No entanto, o percurso sinuoso deixa adivinhar que o argumentista Rodrigo Guedes de Carvalho não sabia como chegar ao final ou não tinha a real certeza do que queria fazer com ele, o que é uma pena dado o caminho trilhado até ali. Duas estrelas e meia.

Realização: Tiago Guedes e Frederico Serra
Argumento: Rodrigo Guedes de Carvalho
Adriano Luz como Xavier Oliveira Monteiro
Manuela Couto como Helena Oliveira Monteiro
Sara Carinhas como Sofia
José Afonso Pimentel como Rui
João Santos como Ricardo
José Pinto como padre Vicente
João Pedro Vaz como padre Cruz
Miguel Borges como Ismael

Próximo Filme: Buppa Rahtree, 2003

domingo, 19 de agosto de 2018

"The Lies she Loved" (Uso wo aisuru onna, 2017)


Com uma carreira de sucesso invejável numa empresa de desenvolvimento de refrigerantes e um namorado gentil que trabalhava na área da pesquisa médica e acomodava todos os seus caprichos, ela tinha tudo. Depois deixou de ter.
Cinco anos antes Yukari Kawahara (Masami Nagasawa) conheceu Kippei Koide (Issey Takahashi) após uma situação de emergência que obrigou à evacuação do metropolitano em que ambos seguiam. Ela estava a ter uma crise de ansiedade e ele sobressaiu da multidão anónima para a ajudar. A mulher dedicada à carreira abriu o coração e não olhou para trás até ao dia em que a polícia lhe bate à porta, pedindo informações sobre o namorado. Kippei teve uma hemorragia cerebral e encontra-se em coma mas tiveram grande dificuldade em chegar a Yukari pois, como descobriram, a identidade de Kippei é falsa. Yukari Kawahara entra numa rota descendente. À negação, ao sentimento de que tudo não passa de um terrível engano passa à resignação de saber que Kippei – será mesmo esse o nome dele? –, a pessoa com quem partilhou cinco anos de intimidade, lhe mentiu, até chegar por fim, à revolta. O facto de a polícia não ter resposta para as muitas perguntas que tem e, enfim, assumirem apenas que Kippei é uma fraude que utilizou Yukari para ter comida e um tecto dado que era ela que pagava as contas, leva-a a contratar um detective privado Takumi Kaibara (Kotaro Yoshida), para desvendar a verdadeira identidade de Kippei.
Masami Nagasawa é a estrela de “The Lies she loved”. Ela interpreta um papel para qual flui naturalmente simpatia. “A mulher enganada”; “a pobre mulher ingénua que deu tudo de si numa relação para ser traída por um traste”; são as primeiras e óbvias linhas de pensamento mas Masami foge a isso. Ela interpreta uma mulher vitimizada pela revelação no entanto, não intrinsecamente uma vítima. A sua personagem não é perfeita. Naqueles cinco anos Yukari foi tudo menos a namorada exemplar o que não quer dizer que não seja digna de respostas. Ela recusa-se ceder à dor e aposta na fuga para a frente. Quer saber a verdade aconteça o que acontecer e custe a quem custar, mesmo sabendo que Kippei pode nunca vir a acordar ou poderá ter sequelas muito graves.
O argumento de Kazuhito Nakae é inteligente e maduro. As personagens são tridimensionais e os seus motivos são bem trabalhados. Nada é tão simples quanto um: “ele enganou, ela é enganada, ela confronta-o, cada um segue o seu caminho e todos são felizes para sempre”. Em primeiro lugar porque a personagem de Yukari é uma feminista com a opção de vida muito clara de ter uma carreira de sucesso e uma relação romântica. Se calhar tem até algum medo do compromisso, o que vai sendo desvendado através de decisões dúbias que toma ao longo da relação. Estas personagens, pelo menos no cinema japonês são mais tipicamente associadas aos intérpretes masculinos. Onde é que já se viu uma mulher segura de si própria que tem um trabalho de sucesso e uma relação e o cônjuge é que trata da lida da casa? Por outro lado, Kippei Koide sobressai como mais do que uma alma ferida que um aldrabão com um coração de pedra. Ele é votado de uma sensibilidade extrema que advém de um passado misterioso mas não é nenhum capacho. É como se através das analepses, que são bastantes, Nakae quisesse demonstrar que a fotografia é tão simples como é apresentada. Nem Yukari é um anjo e ela até surge como um bocado egoísta – por vezes a personagem parece mais interessada em manter o retrato mental que tem da sua relação do que em melhorá-la de facto. O argumento dá espaço a outras personagens como o detective Kaibara, um pouco distraído e desorganizado como um Colombo japonês que tem direito a um subenredo aquém do esperado e que se desenlaça de forma bonitinha ou a lolita Kokoha (Rena Kawaei) com uma paixão por Kippei mas tão limitada que nunca representa um verdadeiro obstáculo. O objectivo e a meta está na relação romântica de duas pessoas como o cenário intimista não se cansa de mostrar.
Vai soar a cliché mas o mais importante em “The Lies she loved” é o caminho e não o destino. A recompensa reside em acompanhar a viagem de Yukari na vida real, pelo Japão para trazer para a luz do dia os segredos que a polícia não colocou a descoberto e a sua viagem interior que a faz perceber quem é enquanto pessoa, mulher e parceira e o que pretende para a sua vida. Três estrelas.
Realização: Kazuhito Nakae
Argumento: Kazuhito Nakae
Masami Nagasawa como Yukari Kawahara
Issey Takahashi como Kippei Koide
Kôtarô Yoshida como Takumi Kaibara
Daigo como Kimura
Rina Kawaei como Kokoha

Próximo filme: "Blood Curse" (Coisa Ruim, 2006)

domingo, 8 de julho de 2018

"Annihilation" (2018)


Unsettling. Esta palavra pode ser entendida na língua portuguesa como inquietante ou perturbadora. Ainda assim, perde a força na tradução. Como se as palavras não conseguissem suportar em toda a dimensão o desconforto que se pretende apontar. Unsettling tem sido uma das palavras mais repetidas nas últimas semanas, aqui como na imprensa internacional a respeito do filme “Hereditary”(2018). É a segunda vez que a aplico num espaço de três meses a respeito de um filme, depois de “Annihilation”. Curiosamente, (ou talvez não), estão ambos no meu top 5 de filmes de 2018, sendo que descrever qualquer um deles como um filme de terror é apenas redutor.

“Annihilation” é a adaptação do primeiro capítulo da trilogia literária “Southern Reach” de Jeff Van derMeer, que acompanha uma expedição de cientistas à Área X. Onde antes se encontrava um parque natural está agora uma região isolada envolvida por espécie de campo electromagnético conhecido como “The Shimmer” ou “O Brilho”. Apesar das similitudes com um “The Simpsons Movie” (2007) ou a obra “Under the Dome” de Stephen King mas as referências não se ficam por aqui seja na temática ou no estilo. “Blade Runner” (1982) “Under the Skin” (2013) flutuam à mente. 

Têm sido enviadas sucessivas expedições científicas e militares para explorar uma zona chamada Área X mas até ali nenhuma das missões voltou a comunicar com o exterior. Lena, interpretada por uma fria Natalie Portman, é uma professora de biologia e ex-militar ainda a lidar com a dor do desaparecimento do marido Kane (Oscar Isaac) após este partir numa missão – adivinharam – à Área X. Um dia ele surge como por magia em casa de ambos. A alegria do regresso mistura-se à certeza de que Kane já não é a mesma pessoa que partiu. Determinada a compreender o que sucedeu a Kane e salvar o marido de uma maleita súbita que se abate rápida e furiosa sobre ele, Lena junta-se a uma expedição feminina de cientistas à zona misteriosa. A equipa inclui a Dra. Ventress, (Jennifer Jason Leigh) uma psicóloga pragmática com um segredo; Anya (Gina Rodriguez), Shepard (Tuva Novotny) e Josie (Tessa Thompson), especialistas em diversas áreas do conhecimento com passados sombrios e motivos muito próprios para encetarem uma viagem ao desconhecido da qual poderão não regressar. Escusado será dizer que após entrar em “The Shimmer” já não estão no Kansas. Tudo é igual e em simultâneo diferente. Para citar um cientista: “na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E mesmo as próprias cientistas, cuja percepção do tempo também se encontra difusa sentem a permanente transformação. Imaginem o Brilho como uma grande liquidificadora onde animal, planta ou o minério se misturam e são cuspidos com uma nova forma. A esse respeito refira-se uma das criaturas com um dos designs mais originais e aterradores que surgiram em cinema ultimamente, a par de um “The Ritual”. Ambos com orçamentos muito modestos para os resultados apresentados. Durante vários dias, não se falava de outra coisa nas redes sociais, se não, naquela CENA. Naquela besta. Claro que podemos falar de aberrações mas também podemos falar de evolução. Porque no Brilho é como se estivessem num novo planeta, e numa nova atmosfera há novas regras. Não serão as cientistas, o elemento estranho? Não serão elas as aberrações? A própria banda-sonora acentua a sensação de estranheza à medida que os instrumentos de percussão dão lugar a sintetizadores. O orgânico, natural, dá lugar ao que é artificial, alvo de intervenção externa.

Alex Garland retoma em “Annihilation”, temas que já o obcecavam em “Ex Machina” (2014), como o que significa ser humano e como é que essa humanidade se manifesta. Incidentalmente, as personagens, que identificamos enquanto humanas e sabemos serem humanas, parecem desconectadas de tudo e quando demonstram sinais de humanidade não é bonito o que se vê. Lena em particular representa o Homem com todas as suas idiossincrasias. Ela é profundamente egoísta e é por isso que decide incorrer na Área X. Ela sente uma tremenda culpa e sente que se fizer aquilo, irá expiar o seu pecado e ter um final feliz. Um dos maiores pecados de “Annihilation” encontra-se nas sucessivas analepses e prolepses, com exposição desnecessária sobre os motivos de Lena e o seu apetite por auto-destruição, que nos é repetido e insinuado ínfimas vezes bem como o relato na primeira pessoa dos eventos que ocorreram na Área X a terceiros. Ainda assim, “Annihilation” incorre onde poucos foram antes e tiveram sucesso. Estranho pode ser bom. Quatro estrelas.
Realização: Alex Garland
Argumento: Alex Garland e Jeff VanderMeer (Livro)
Natalie Portman como Lena
Benedict Wong como Lomax
Oscar Isaac como Kane
Jennifer Jason Leigh como Dra. Ventress
Gina Rodriguez como Anya Thorensen
Tuva Novotny como Cass Sheppard
Tessa Thompson como Josie Radek

Próximo Filme: "The Lies she Loved" (Uso wo Aisuru Onna, 2017)

domingo, 6 de maio de 2018

"A Silent Voice" (Koe no Katachi, 2016)


“A Silent Voice” que também é conhecido internacionalmente como “Shape of Voice” – vi esta animação poucas semanas depois de o “The Shape of Water”, na MONSTRA e acreditem que a minha cabecinha teve de fazer um rewind para não confundir as coisas – foi um dos maiores êxitos de bilheteira no Japão em 2016, baseado, para não variar, numa manga japonesa. O sucesso do filme não será alheio a factores como um certo despudor para o visionamento do cinema de animação por públicos mais adultos e ainda ao tema tão pertinente no país como o “bullying”. Os casos de bullying são transversais à sociedade japonesa. A cultura do pensamento colectivo, do silêncio do desconforto individual produzem vítimas em idades tão jovens desde o jardim-de-infância à universidade, transpondo-se depois para o mercado de trabalho.

“A Silent Voice” tem um início deprimente. Shoya (Miyu Irino) faz os preparativos para a sua morte anunciada e resolvida no seu âmago. É um rapaz calado e anti-social que passa despercebido e também não pretende ser notar. Mais vale evitar conflitos. Não raras vezes, veremos Shoya a olhar para os pés, querendo evitar qualquer contacto visual e rodeado de pessoas com uma cruz sobre os seus semblantes. São as pessoas a ignorar, não conectar, a todo o custo evitar. O seu comportamento transporta-nos para a escola primária. Dir-se-ia que ele tinha sido alvo de bullying ao longo de toda a sua existência. Na verdade ele começou por ser um. Quando Shoko, uma nova aluna surda chegou à sua aula, o então inquieto, barulhento, sem noção e incapaz de transmitir os seus verdadeiros sentimentos Shoya faz dela o alvo principal das suas partidas. Essa história tem um fim quando Shoko acaba por ser transferida para outra escola por não aguentar mais os abusos. Censurado por professores e colegas, Shoya acaba por se tornar vítima do seu próprio veneno, retirando-se para o seu interior, onde tudo é mais suportável até se tornar um jovem adulto. No entanto, o seu caminho volta a cruzar-se com Shoko e a sua família, os velhos amigos que lhe dificultaram a vida e ainda outros que permitem a Shoya encontrar o verdadeiro valor na sua vida e se sempre haverá a possibilidade de expiação de pecados.

Esta animação tem menos de espectáculo que de introspecção. Não me entendam mal, que a animação é tão competente e belíssima quanto costuma ser regra no cinema japonês, a abordagem é que se foca mais na narrativa que na forma. “A Silent Voice” revela-se uma reflexão interessante sobre o bullying pois foca diversos pontos de vista, incluindo um central que não é tão habitual que é o de quem comete bullying, ainda que Shoya seja um bully arrependido. Entre as diversas questões que a animação levanta, estão, por exemplo: até quando se deve carregar o fardo da culpa por eventos cometidos há muitos e muitos anos. Shoya era um miúdo imaturo e parvo quando fez mal a outra criança e acabou por sofrer a vida toda por isso. Contudo, Shoya não era o único a fazê-lo e acabou por ser o único a ser castigado. Mesmo após diversas trocas de argumentos já em jovem adulto com os colegas, esses continuam a não querer aceitar que tiveram um papel activo no bullying de Shoko recriminando-a até pelo seu sofrimento e do de Shoya. Duas vezes vítima. Serão eles melhores que Shoya quando nunca assumiram as suas acções erradas e acabaram depois por fazer o mesmo a Shoya quando este foi “apanhado”? “A Silent Voice” é conducente a uma reflexão ainda mais pessoal do espectador, pela sua própria experiência enquanto vilão ou vítima em situações similares. Será Shoya uma figura trágica digna de empatia ou é ainda e sempre um monstro? Perdoar? Esquecer? Tudo isto é tão mais amplificado quão doce é a sua vítima Shoko. Apesar de tudo quanto lhe aconteceu nunca foi capaz de “lutar” contra Shoya por quem sente carinho.
Em comum entre todos os personagens está o profundo desejo de conexão, aquele que tão desesperadamente se procura durante toda a juventude e até eventualmente pela vida adulta fora. É ainda um retrato muito realista das desventuras da juventude pois a acção nos locais que se identificam com ela, na escola, em casa, na rua, no parque, na feira popular… É muito difícil não apreciar o mérito de reprodução daqueles momentos tão fulcrais na construção da personalidade, de “A Silent Voice” mesmo quando este se torna tão histriónico quanto a vida interior adolescente e até um poucochinho demais delicodoce. Três estrelas e meia.

Realização: Naoko Yamada
Argumento: Reiko Yoshida, Yoshitoki Oima (manga) e Kiyoshi Shigematsu
Miyu Irino voz de Shôya Ishida
Saori Hayami voz de Shoko Nishimiya
Aoi Yûki voz de Yuzuru Nishimiya
Kenshô Ono voz de Tomohiro Nagatsuka
Yûki Kaneko voz de Naoka Ueno
Yui Ishikawa voz de Miyoko Sahara
Megumi Han voz de Miki Kawai
Toshiyuki Toyonaga voz de Satoshi Mashiba
Mayu Matsuoka voz do jovem Shoya Ishida

Próximo filme: "Tracer" (Truy Sat, 2016) 

domingo, 22 de abril de 2018

The Eyes of my Mother, 2016


Francisca (Olivia Bond) vive no campo com o pai (Paul Nazak) e a mãe (Diana Agostini). Bastante mais velhos, eles parecem ter tido a menina fora de tempo, quase como se não esperassem já ter filhos. A mãe tinha sido cirurgiã em Portugal. A dada altura decidiu mudar-se para o mundo rural na sua vertente mais solitária na América profunda. Ataca os problemas dos animais com a mesma abordagem clínica com que tratava os seus doentes e não se escuda de o fazer diante da filha. Francisco tem o conhecimento de coisas como o interior do olho humano ou como decapitar uma vaca, detalhes seriam mórbidos e desadequados para qualquer criança. Um dia Charlie (Will Brill), um forasteiro bate à porta da sua casa isolada e assassina de forma brutal a mãe de Francisca. O pai depara-se com o cenário macabro ainda a desenrolar-se e espanca e acorrenta Charlie no celeiro. Francisca traumatizada, curiosa e sem o calor de um pai cada vez mais desconectado e incapaz de lhe mostrar o mundo, refugia-se no que aprendeu com a mãe pelos seus olhos de criança e inicia a experimentação no prisioneiro.

“The Eyes of my mother” é uma longa-metragem de parcos 79 minutos, a preto e branco, dividida em três capítulos: “Mãe”, “Pai” e “Família”. O primeiro capítulo é o mais importante para a formação de Francisca. Entre o amor da mãe que é a sua única fonte de carinho e os ensinamentos desta que incluem a prática clínica e a religiosidade e o ataque sociopata de que esta é alvo, o interior de Francisca é fraturado. Não é como se ela não pudesse já sofrer de tendências para a sociopatia mas não é como se assistir a um crime fizesse por mitigar um desequilíbrio já presente. Ela aborda a morte com uma abordagem clínica, movida por uma psique infantil. Por outro lado, o “Pai”, como evidenciado nesse capítulo, é uma figura presente apenas na forma física. O trauma afectou-o – prender o criminoso à sua sorte, ao invés de chamar a polícia não é o comportamento mais ajustado e deixar que a filha interaja e da forma como o faz com Charlie, revela no mínimo uma atitude displicente – mas a sua mente prefere esquecer o que sucedeu por completo, deixando a menina, para todos os efeitos, órfã de mãe e de pai. Francisca, na sua versão adulta, interpretada pela portuguesa Kika Magalhães sente uma profunda solidão que a faz querer conectar-se com outros seres a todo o custo, constituir uma “Família”, que a faz agarrar-se ao que tem mais perto de si: o assassino prisioneiro e as memórias de uma mãe amada que estão intimamente ligadas à morte e que nunca conseguiu processar de forma saudável.

Kika Magalhães, na sequência de uma Olivia Bond já de si perturbadora, está excelente. Ela imprime uma vulnerabilidade tal na sua Francisca, que as atitudes mais horrendas e que se vão intensificando até ao final anticlimático, desde a frieza do assassinato à impossibilidade de renunciar às suas vítimas já depois de falecidas ou um comportamento sexual desviante são, em certa medida “perdoadas”. Francisca nunca amadureceu em termos psicológicos. A consciência do que é o bem e o mal e do que é socialmente aceitável está danificada de forma irremediável, mas ela nunca demonstra ser motivada por maldade, apenas solidão. É triste e patética antes de temível ou sádica e no entanto, é todas essas coisas. A esplêndida palete de cores – a película está filmada a preto e branco – acentua a solidão e a confusão que se instala no estado mental de Francisca à medida que esta cresce. Teria sido interessante ter visto a psique de Kika desafiada e o seu comportamento desconstruído e nem sempre é credível a forma como Francisca consegue deixar provocar várias vítimas tendo uma aparência tão frágil. Ainda assim, desconcertante, “The Eyes of My Mother” assemelha-se em aparência talvez à obra de um Hitchcock mas a sensibilidade que a inspira pode ser mais rapidamente encontrada no brutal cinema de terror francês. Isto, sem mostrar uma gota de sangue vermelho. Três estrelas.
Realização: Nicolas Pesce
Argumento: Nicolas Pesce
Kika Magalhães como Francisca
Diana Agostini como Mãe
Paul Nazak como PaiOlivia Bond como jovem Francisca
Will Brill como Charlie
Joey Curtis-Green como António
Flora Diaz como Lucy
Clara Wong como Kimiko

Próximo Filme: "A silent voice" (Koe no Katachi, 2016)

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

"Blade of the Immortal" (Mugen no junin, 2017)


No antigo Japão, durante o shogunato Tokugawa, em que os samurais eram ainda poderosos e respeitados, exercendo uma visão de justiça prisioneira de um código de conduta feudal, surgiu a lenda de um matador de homens amaldiçoado com a imortalidade. Manji (Takuya Kimura) era o samurai mais poderoso de todos e a sua única fonte de humanidade residia apenas na inocente irmã mais nova, que acaba por morrer em face dos pecados de Manji. Ele é amaldiçoado por uma tal de Yaobikuni (Yoko Yamamoto), um ser sagrado que acha que Manji ainda pode ser muito útil dada a capacidade extraordinária com a espada e torna-o imortal através da inserção de vermes no corpo dele. Cada vez que Manji é ferido em combate ou esquartejado, os vermes trabalham em conjunto para juntar os membros separados. Muitos anos depois, cruza-se com Rin (Hana Sugisaki) uma cópia exacta da sua irmã, que viu o pai ser morto por um gangue e a mãe arrastada pelos bandidos para um destino, sem dúvida terrível, mas incerto e lhe pede que a ajude a fazer justiça. A princípio o velho samurai quer que a miúda o deixe em paz, mas a semelhança com a irmã e a terrível injustiça fazem-no pegar novamente na espada para apanhar os bandidos, algo que já não deve fazer há umas boas décadas.
“Blade of the Immortal” é mais uma adaptação live-action de uma mangá japonesa (30 volumes!), por um Miike que é tudo menos estranho no que respeita a adaptações. A narrativa, em torno do tema da vingança é a mais antiga que existe. Miike não reinventa a roda, mantendo-se fiel ao seu estilo. A violência e o gore com umas pinceladas de humor negro nunca o envergonharam e “Blade of the Immortal” não é excepção. Aliás não consigo ver como é que um samurai matador de homens e uma boa senda de vingança não iriam parar ao colo de Miike. A sequência inicial, que termina com milhares de litros de sangue jorrados e que cobrem todo o chão que os personagens pisam é talvez uma das mais marcantes de todo o filme. Não deixa de ficar talvez o sentimento de que Miike apresentou o seu melhor demasiado cedo no filme. Um Manji cego pela raiva, luta com uma paixão e uma destreza que não se voltam a ver! A coreografia certeira e frenética sobretudo dessa sequência faz recordar esforços anteriores de Miike como a louca batalha final de “13 Assassins” (2010).
A partir daí o anti-herói surge apenas enferrujado e trapalhão, a que não é alheia a tendência espectacular de Rin se inserir em situações de perigo sem pensar nas consequências.
Uma ideia interessante ao longo de todo o filme é a de que Manji não é muito diferente de Anotsu (Sota Fukushi), o líder dos vilões que procura. Enquanto, Manji matava indiscriminadamente, Anotsu tem um sentido de direção muito vincado mesmo que tenha uma moral distorcida. Até Rin, supostamente uma criança que Manji não quer com as mãos manchadas de sangue, já pouco de inocente tem, tendo assistido aos actos horrendos cometidos sobre os pais, bem como a morte dos bandidos do gangue. Ela pede a morte de Anotsu e mais nada parece importar do que isso. O seu sentido de missão é imparável tanto que quando Manji hesita, ela insiste em continuar com a vingança mesmo que isso implique que seja ela a empunhar a espada que irá trespassar o coração do monstro. Claro que existe a esperança de redenção mas esse é um caminho que tem de ser sempre trilhado pelo espectador. Ao redor deste trio surgem muitas, demasiadas personagens, com pouco a nada de memorável que servem para desfilar pelo ecrã como vítimas de Manji, quais “camisolas vermelhas” de “Star Trek” e porque são queridas dos fãs da mangá, ainda que ao comum espectador não digam nada. “Blade of the Immortal” pode ser uma adaptação e decerto não é perfeito mas é também Miike igual a si próprio e isso deve bastar. Três estrelas.

Realização: Takeshi Miike
Argumento: Tetsuya Oishi e Hiroaki Samura (mangá)
Takuya Kimura como Manji
Hana Sugisaki como Rin Asano / Machi
Sôta Fukushi como Anotsu Kagehisa
Hayato Ichihara como Shira
Erika Toda como Makie Otono-Tachibana
Kazuki Kitamura como Sabato Kuroi
Chiaki Kuriyama como Hyakurin
Shinnosuke Mitsushima como Taito Magatsu



Próximo Filme: "Exte: Hair Extensions" (Ekusute, 2007)

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

"The Villainess" (Ak-nyeo, 2017)


Conquanto seja um espectáculo visual assistir aos suspeitos do costume desferir golpes em todas as direcções e receber uma centena de pancadas e continuar de pé a despeito dos ferimentos como um Iko Uwais (basicamente toda a sua filmografia) ou, disparar balas em todas as direcções como se fosse um profissional da magia e não da profissão mais violenta deste mundo qual Keanu Reeves, isso já não é tão habitual vindo de uma mulher. De vez em quando necessito de doses de personagens femininas fortes no meu cinema de acção e isso não é assim tão habitual. Os exemplos anteriores masculinos mencionados não serão os melhores actores que a arte da representação já viu mas, nem as mulheres são as flores delicadas que se julgava até não há muito serem. Existem algumas figuras icónicas no género como a eterna Ripley mas esse exemplo é já muito antigo e mesmo a Beatrix Kiddo de “Kill Bill” já remonta a 2003/4). “Salt” não foi além de 2010 e também não se antevê grande história num “Tomb Raider” (2018) com uma Alicia Vikander no seu estilo mais insípido. Eis, que depois de alguns anos de deserto e de um autêntico “Furiosa Show”, onde deixou um Tom Hardy a milhas da sua presença no ecrã, aparece em 2017 uma Theron pronta a tirar partido do ímpeto gerado em “Mad Max: Fury Road” (2015) para se elevar ao estatuto de heroína de acção já que tudo o resto já conseguiu em “Atomic Blonde”.
E como pareceu existir um grito colectivo pelo ressurgimento pelo poder feminino, empurrado pelos novos extremismos de direitas alternativas (revirar de olhos), este teve a concorrência de um “The Villainess” (2017) que surgiu subtil mas foi ganhando tracção por entre cinéfilos além das semelhanças depois encontradas com a congénere ocidental que estreava depois. O chamado “Money shot” parece tirado a papel químico entre os filmes mas não estou aqui a querer acusar ninguém de cópia, até porque “The Villainess” tem muito de emprestado a filmes do próprio país, bem como do próprio género de artes marciais. Enquanto a loura platinada de Theron está fisicamente mais próxima de uma Carly de “The Long Kiss Goodnight” (1996), Ok Bin Kim encarna uma assassina com uma psique mais próxima daquela, enquanto progenitora de uma criança menor mas sem as one liners pirosas. As cenas de acção de “The Villainess” são um híbrido do que melhor se tem feito nos últimos anos no cinema de artes marciais e isso não tem mal nenhum. A sequência inicial, em que uma Sook-hee irrompe por um edifício adentro matando todos e quaisquer que se atravessem no seu caminho, é uma das mais brutais que vi ultimamente e completamente merecedora de todos os prémios pela mestria técnica em particular, o trabalho da equipa de duplos. Se quiserem exemplos, podem remontar a “Oldboy” (2003) ou “The Raid 2” (2014), com um bónus adicional de espectativa na primeira pessoa de um “Hardcore Henry” (2015) que muito mais gente devia ter visto. É de loucos imaginar como alguns daqueles momentos foram capturados pelas câmaras. São dez minutos inteiros de destruição total. Outro momento de acção fantástico envolve uma perseguição de mota que termina com os motoqueiros a esgrimir argumentos… com espadas.
Que tal isto para hype? A narrativa caminha depois para o mais convencional de uma “La femme Nikita” (1990). Jovem e enlouquecida pela morte do seu amado Sook-hee é movida pela sede de vingança até perceber que está grávida do amor que perdeu. Encontrada pela Agência Secreta coreana, a única hipótese de escapar às malhas da justiça (a sua lista de mortes é muito elevada) é tornar-se uma operativa e cumprir escrupulosamente as missões que lhe são apresentadas pela enigmática chefe Kwon (Seo-hyeong Kim), se quiser almejar viver uma vida de liberdade com a filha. É-lhe dada uma nova identidade, uma casa e até surge um novo interesse romântico que lhe dão a aparência de uma vida normal mas em breve o imperativo das missões se tornarão realidade, bem como de uma vingança ainda não sanada. Com pouco mais de duas horas “The Villainess” é traído pela incapacidade genética de não adicionar melodrama que arrasta uma película que tinha iniciado de modo tão promissor mas nada que retire a vontade de assistir a este filme. As analepses que ainda são em número razoável são uma boa adição para a compreensão das motivações da “Vilã”. Falta-lhes, no entanto, a fluidez que se encontra nas cenas de acção, tornando-se difícil distinguir a acção em tempo real dos bocadinhos de história que ajudam a montar o puzzle da personalidade de Sook-hee. Ok-bin Kim está perfeita no papel da assassina rebelde à procura de vingança que se torna uma operacional obediente. Sempre confinada aos papéis que lhe são apresentados e nunca tendo realmente o poder de escolha na sua vida. A única forma de autonomia e de expressão de Sook-hee é apenas na sua forma mais violenta. “The Villainess” é um bichinho complicado e imperfeito com maravilhosas cenas de acção e a sua estrela é uma Ok-bin Kim que já devia estar no radar de todo o mundo. Três estrelas.

Próximo Filme: "Blade of the Immortal" (Mugen no jûnin, 2017

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

“Notas de um Festival de Cinema de Terror” – Parte um


Um Festival, doze filmes. Desde 2011, com a interrupção de um ano (2013) em que valores mais altos se levantaram (temos pena mas férias), que não falho um ano. Nem sei se este foi o ano mais prolífico em termos de sessões do Motelx – ainda assim foram 12 bolas! – mas não foi, apesar das expectativas, a melhor edição de sempre. Ainda assim, e como bem diz a expressão popular, o melhor estava guardado para o fim e não, não me refiro ao fenómeno IT (2017)!

Sessão de Abertura

"Super Dark Times" (2017)

Depois de uma sessão de apresentação mais convencional viramo-nos para o que o Motelx sabe fazer melhor: dar a conhecer gemas indie que nos dão um murro no estômago que perfura a pele, revira as tripas lá dentro e as puxa para fora. “Super Dark Times” é o título hiperbólico e um pouco cómico de uma película com muito pouco de jocoso. Zach (Owen Campbell) e Josh (Charlie Tahan) –, este último digam lá se não é a cara chapada da Martha Plimpton? -, São um duo de amigos que passa os dias entre ir para a escola, percorrer os terrenos da sua pacata vila de bicicleta e inventar passatempos. Falam de raparigas, de rufias, de jogos de vídeo. Nada de extraordinário. Um dia decidem quebrar a rotina juntando-se a dois miúdos que não conhecem bem, Charlie (Sawyer Barth) que é o irmão mais novo de uma colega de escola e Daryl (Max Talisman), um puto ruidoso e malcriado que faz qualquer pessoa com um mínimo de sanidade mental, questionar por que querem sequer estar na sua companhia. Ânimos exaltam-se, um acidente sucede e Daryl acaba morto. O pânico toma conta dos adolescentes que decidem ocultar o que se passou. Mas retomar a vida normal é mais difícil do que uma decisão extemporânea podia fazer parecer e a pressão quebra de formas diferentes Zach e Josh.

“Super Dark Times” é, como o próprio nome indica, super negro. Faz refletir sobre os arrependimentos e faz perguntas difíceis como quão “para sempre” são de facto os laços de amizade que tínhamos como inquebráveis, se conhecemos tão bem como pensamos aqueles que têm estado nas nossas vidas desde sempre e se seríamos capazes de tomar aquelas decisões nas mesmas circunstâncias. Nota-se a ausência de interferências externas na vida destes adolescentes. Eles são acriançados, idiotas, borbulhentos, envergam pêlos solitários à laia da existência de bigode e tiram macacos do nariz. Comportam-se tal e qual os adolescentes da vida real. Tudo isto pontuado por uma imagética muito reminiscente de “Stranger Things” (e este nem foi o primeiro filme do festival a fazer eco de uma série que é a autêntica definição de hype), com o teen spirit inquieto e depressivo dos anos 90, numa idade que é, para todos, francamente estranha. Pode uma má acção definir-nos para o resto da vida? Agora imaginem uma culpa dessas cair sobre os ombros ainda não muito largos de adolescentes que nunca saíram da sua concha e do seu pequeno vilarejo. “Super Dark Times” é em última análise traído pela sua própria vontade de ser original, quando já o era desde o inicio, (o tema era lúgubre o suficiente para necessitar de invocar os excessos típicos do género de terror). “Less is more”. O desvio de 45º perto do final não deixa de ser, no entanto, uma decisão corajosa numa estreia cinematográfica muito competente de Kevin Phillips. Três estrelas.

Próximo Filme: “Notas de um Festival de Cinema de Terror” – Parte dois

domingo, 11 de junho de 2017

Headshot, 2016


O cinema indonésio tem estado sobre a mira do público internacional, tendo conseguido exportar – com algum sucesso admita-se –, actores como Iko Uwais, Yayan Ruhian, Julie Estelle ou Joe Taslim. Também a dupla Stamboel/Tjahjanto, mais conhecida como os “Irmãos Mo”, não são novatos nestas lides desde que chamaram a atenção pelo fantástico “Macabre” (2009), uma espécie de “The Texas Chain saw Massacre” (1973) dos tempos modernos, tendo-se destacado por terem criado algumas das intervenções mais criativas e interessantes em antologias de cinema a oeste, da 2ª década do novo milénio (“ABC’s of Death”, 2012 e “V/H/S/2”, 2013). A pressão para gerar novos sucessos de bilheteira deve ser tão grande quanto a sentida por Ishmael (Iko Uwais), o personagem principal de “Headshot” que encontra mauzões em cada esquina, os quais chacina com brutalidade, minuto após minuto de acção frenética e um pouco louca. A movê-lo está um dos clichés mais utilizados, irritantes e cansativos em cinema ou telenovela. O pobrezinho sofre de amnésia. Encontrado numa praia como morto, ele é assistido pela Dra. Ailin (Chelsea Islan), a personagem mais desesperada por afeição que tenho visto nos últimos tempos. Que importa que ele tenha uma bala na cabeça? Qual é o mal de alguém ter tentado assassiná-lo? Pelos vistos o desconhecido misterioso é atraente e, se for bonzinho, como aparenta, uma vez que depende da boa vontade de estranhos já que não se recorda do próprio nome, deverá ser fácil amestrá-lo até se tornar o namorado perfeito. Ela até lhe dá o nome do personagem principal do livro que está a ler naquele instante: Ishmael um marinheiro resgatado com vida após o encontro funesto do seu barco com a baleia Moby Dick. Tão romântico. Até que ele é visto pelos mauzões que lhe espetaram com uma bala na cabeça. Eles pertencem a uma seita secreta de assassinos e gostariam que desta vez ele ficasse morto. Ailin acaba por ser raptada e Ishmael toma a decisão de a resgatar, mesmo que isso implique descobrir factos menos abonatórios sobre o seu caracter pré-amnésia.

Para este filme os irmãos Mo vão reciclam estórias clássicas do cinema de acção e vão repescar estórias do próprio corpo de trabalho, de que “Killers” (2014) ou “V/H/S/2” constituem um bom exemplo. Existe um entendimento perfeito de que o argumento é secundário. “Heashot” poderá afugentar alguns cinéfilos devido à sua matriz base que é repetitiva. As suas qualidades encontram-se antes nos momentos de combate corpo a corpo, coreografados pelo próprio Uwais e intercalados com acção bélica que faz recordar “The Raid 2” (2014). A título de exemplo, um dos instantes que ficarão para a estória envolvem um autocarro cheio de inocentes e armas. Muitas Armas. O filme tem ainda alguns repetentes tais como Julie Estelle e Very Tri Yulisman que retomam os papéis de “The Raid 2” “Rapariga do Martelo” e “Rapaz do Taco de Baseball”, perdão, como “Femme fatale do facalhão” e o “Assassino Hipster”. Quem pode julgar os “manos Mo” por estas brincadeiras? Eles sabem o que o público quer ver? Os actores é que poderão se cansar de interpretar o mesmo saco de pancada vezes sem conta. As cenas de luta são longas e extenuantes, exageradas e irrealistas mas que ninguém diga que não têm estilo ou não ficam na memória. Morte por facalhão, catana, metralhadora são o pouco nosso de cada dia. Apenas o estilo shaky cam acaba por confundir mais em alguns momentos do que a compreender a acção dura que se vê no ecrã.

O cinema de acção indonésio apresenta-se como a solução para colmatar o vazio entre a acção ultra-violenta mas estilizada do cinema coreano e o wire fu de uma Hong Kong que parece ter-se esquecido dos seus “Hard Boiled” ou “A Better Tomorrow”. Falta apenas encontrar um meio-termo entre a sofreguidão das cenas de acção e a exigência de um argumento que apresente uma estória nova que valha a pena contar através deste estilo tão peculiar. Duas estrelas.

Realização: Kimo Stamboel e Timo Tjahjanto
Argumento: Timo Tjahjanto
Iko Uwais como Ishmael
Chelsea Islan como Ailin
Sunny Pang como Lee
Very Tri Yulisman como Besi
Julie Estelle como Rika
Yayu A.W. Unru como Romli

Próximo filme: Get Out, 2017

domingo, 16 de abril de 2017

"Knock Knock! Who's There?" (2015)


Hong Kong não parece querer abrandar a produção massiva de filmes de terror. Como se costuma dizer quantidade não é sinónimo e qualidade. E “Knock Knock! Who’s There?” não apresenta qualquer pretensão em ascender à parte superior da tabela.

Carrie Ng é uma actriz veterana de Hong Kong que conseguiu emergir de uma sucessão de maus filmes de categoria III e efetuar com sucesso a transição para o cinema destinado ao grande público. Mas se o tempo foi seu amigo e lhe trouxe respeito e reconhecimento internacional não lhe trouxe jeitinho nenhum para a realização… Entre outros pecados cai no erro da antologia. Ao invés de se focar em retratar uma boa estória foca-se em três, cada uma mais desfocada que a anterior. 
Em “Missing” Isabella (Annie Liu) morre num acidente rodoviário aparatoso ao tentar escapar dos paparazzi que a perseguem e ao seu noivo Harry (Carlos Chan). Inquieto, o seu espírito permanece na casa mortuária onde trabalha Roy (Babyjohn Choi), uma velha paixão. Diz que se reacende a acendalha do amor, que é impossível de concretizar dado… bem, dado o facto de ela estar morta e assim mas pronto, diz que o amor é cego e pelos vistos também imortal.

Segue-se-lhe “Karma” e Carrie Ng interpreta Ngo uma agente funerária viciada no jogo que ouve falar de uma susperstição, segundo a qual, se ela enterrar um gato vivo, será bafejada com grandes riquezas. Na sua ganância, ela comete o erro de matar o gato da sua sobrinha Shou (Kate Tsui). Tímida e quieta, ela recusa ignorar o acto atroz cometido pela tia e vai rebelar-se.
Em “Smell” Yan (Jennifer Tse) é uma artista especialista em tornar os mortos apresentáveis para as exéquias fúnebres que não larga o telemóvel. Um dia recebe uma mensagem de Mei-Mei (Nicola Tsang), alguém que não conhece mas com quem simpatiza de imediato. Mei-mei pede-lhe para ir buscar algo por ela e Yan decide ajudá-la, enfiando-se num bairro pouco recomendável da cidade…
“Knock Knock! Who’s There?” é uma miscelânea de estórias com um tom desigual e emprestado a tantos outros que lhe sucederam. Em casos pontuais, que podem ser encontrados em Eric Kwok e Jennifer Tse e, dada a sua experiência afigura-se uma rara tentativa de elevar o material mas o esforço é insuficiente para apagar o meu gosto deixado pelo mau argumento e direcção.

À excepção da sequência inicial, na qual Isabella sofre uma morte violenta que envolve paparazzi sem escrúpulos e um camião do lixo, “Missing” podia ser ignorado quase na totalidade. Para uma antologia que é vendida como sendo de terror, este primeiro segmento é romântico e enfadonho. Está também repleto de cenas inconsequentes. Isabella torna-se um fantasma dado ter assuntos por resolver, assuntos do coração entenda-se, um pouco como “Ghost” (1990). Entre outras descobertas percebemos que o noivo que deixa vivo não lhe desperta interesse além de um velho amor, terminado de forma precoce e absurda devido à interferência da família dela. O que resulta desta revelação? Nada. E a ameaça de espíritos maus nesta terra a Isabella também desaparece tão rapidamente quanto surge.“Karma” é uma velha estória de crime e castigo e embora Carrie Ng sobressaia no papel de vilã, isto não é necessariamente positivo. “Karma” assemelha-se mais a um produto feito para televisão –meia hora de distracção –, do que uma película para televisão. Apesar de algumas ideias interessantes e com potencial inovador, tais como a possessão por um gato e algum mau CGI, o segmento nunca se consegue elevar como algo mais do que medíocre. “Smell” é um título alusivo ao cheiro de cadáveres em decomposição e o que acompanhamos é a viagem de uma mulher (Jennifer Tse) que trabalha no ramo da morte até ao seu encontro. “Smell” é o segmento mais brutal da antologia, no entanto, pouco mais tem do que isso e surge em quantidades muito pequenas, demasiado tarde. Considerando o constrangimento do orçamento os maus efeitos visuais podiam ser perdoados se mais alguma coisa, o que quer que fosse, tivesse um nível superior. Mas isso nunca sucede e, acreditem, para quem acreditou até ao fim por algum tipo de retorno a espera é penosa. “Knock Knock” é o tipo de filme que faz questionar se vale a pena insistir com o visionamento de filmes de terror made in Hong Kong. É que este filme já nem é só formulaico, é horrível e uma perda de tempo. Mais valia não ter aberto a porta a esta sugestão. Uma estrela e meia.


Realização: Carrie Ng Ka-Lai                      
Argumento: Carrie Ng Ka-Lai, Frankie Tam e Yip Ming-Ho           
Segmento: “Missing”
Annie Liu como Isabella
Carlos Chan como Harry
Babyjohn Choi como Roy

Segmento: “Karma”
Kate Tsui como Shou Yun
Carrie Ng como Ngo
Simon Lui como Tong

Segmento: “Smell”
Jennifer Tse como Yan
Nicola Tsang como Mei-Mei

Eric Kwok como “Assassino”


Próximo Filme: Headshot, 2016

domingo, 5 de março de 2017

"The Handmaiden" (Agassi, 2016)


Chan-wook Park, realizador de filmes tão brilhantes e brutais como a trilogia da Vingança (2002-2005), um dos melhores segmentos da antologia de terror “Three… Extremes” (2004) ou ainda o injustamente ignorado “Snowpiercer” (2013) ainda não encontrou um desafio que não pudesse superar. Desta feita adaptou um romance gótico-vitoriano “Fingersmith” de Sarah Waters escrito em 2002 e transportou-o para a Coreia dos anos 40, ocupada pelo invasor Japão. Tanto quanto me foi dado a perceber (obrigada Google!), a essência e a motivação das personagens permanece a mesma contudo, elas seguem o rumo que Chan-wook Park lhes quis dar. Este thriller erótico-dramático foi escrito por uma romancista mas as personagens são tão familiares, tão intrinsecamente ligadas à obra de Chan-wook que quem não saiba dirá com facilidade que “The Handmaiden” é 100% fruto do seu imaginário.


Hideko (Min-hee Kim) é uma órfã japonesa prisioneira numa relação inquietante com Kouzuki (Jin-woong Jo) um coreano que se casou com uma tia dela para ascender socialmente e usufruir do dinheiro da herdeira para dar azo à sua derradeira paixão: a literatura. A fortuna da jovem japonesa capta as atenções de um vigarista que se apresenta como um Conde Fujiwara (Jung-woo Ha) tomado de ardores de amor e paixão, herói que a irá resgatar da clausura. Para tal, ele capta a ajuda da pequena ladra Sok-hee (Tae-ri Kim), uma servente que deverá influenciar e colocar Hideko no caminho do sedutor.
Um plano que parecia simples complexifica-se quando Hideko e Sook-hee forjam uma forte ligação. Elas são mais iguais do que seria expectável. Presas às circunstâncias do nascimento, elas parecem fadadas à impossibilidade de escapar aos destinos que lhes foram prescritos há muito, muito tempo. Por dinheiro, ambas são joguetes nas mãos dos homens. Até que surge num plano maquiavélico uma hipótese derradeira de liberdade. As relações entre as personagens são intrincadas e a duplicidade é uma constante. Esta percepção do estado de coisas e das relações entre personagens instala-se pela apresentação de uma narrativa menos comum, divida em capítulos, como se tratasse do livro que lhe deu origem. Cada capítulo é apresentado do ponto de vista das diversas personagens e gera-se mesmo o efeito “Rashômon” até que os motivos são desvelados e confrontados para uma verdade dos “factos” sobressair.

“The Handmaiden” é vastamente superior a muitos equivalentes do género e sim, o recente “Crimson Peak” (2015) vem à mente. As representações do quarteto principal são todas dignas de prémios e a acção move-se devagar, à excepção da última meia hora mas em momento algum se torna insípida como a abordagem de Del Toro. Aqui há beleza à superfície e em profundidade. A cinematografia é esplêndida, o que é aliás comum nos filmes de Park Chan-wook. Existe um forte sentido de transmissão das ideias de clausura física e das barreiras psicológicas que separam as personagens. Sobretudo a relação entre Sook-hee e Hideko é explorada de modo hábil pela câmara curiosa, intrusa, em todos os pequenos momentos, mesmo aqueles em que duas mulheres cúmplices se encontram a brincar aos vestidos. Momentos de comédia transitam para outros de elevada tensão com uma fluidez natural. Por outro lado, existem ainda pequenos momentos de homenagem e referência a trabalhos anteriores, designadamente, uma cena de tortura reminiscente do segmento “Cut” em “Three Extremes” e “Oldboy”. “The Handmaiden” é ainda um thriller erótico com cenas capazes de fazer corar o cinéfilo mais liberal. A despeito do cuidado na direção destas sequências estas prolongam-se sem necessidade, fazendo com que a película perca o ritmo, ou quebre mesmo alguma tensão que lhe antecedeu. Talvez seja este o mal menor num filme onde as personagens são tão violentadas que algo que se assemelhe a um breve momento de prazer saiba a uma pequena recompensa. Quatro estrelas.

Realização: Chan-wook Park
Argumento: Seo-kyeong Jeong e Chan-wook Park
Min-hee Kim como Hideko
Tae-ri Kim como Sook-Hee
Jung-woo Ha como Conde Fujiwara
Jin-woong Jo como Tio Kouzuki
Hae-suk Kim como Miss Sasaki
So-ri Moon como Tia de Hideko

Próximo Filme: "House" (Hausu, 1977)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

"Black Coal, Thin Ice" (Bai ri yan huo, 2014)


Celebrado pela boa qualidade enquanto espécimen do neo-noir, assemelha-se a um dos mais próximos retratos da China industrial que se viu nos últimos anos em filme.

Esta é a China do segundo sector, do crescimento rápido e sem qualquer atenção pela qualidade de vida. Estamos em 1999, e é encontrado numa fábrica transformadora de carvão é encontrado um membro humano. Ali perto, é encontrada o documento de identificação que corresponde a Liang (Wang Xuebing), um trabalhador que não aparecia há algum tempo. O detective Zhang (Liao Fan) é destacado para o caso. Seguindo uma pista, ele em conjunto com outros colegas vai interrogar um suspeito mas a entrevista corre da pior forma possível. Misto de incúria e arrogância da polícia desenrola-se um tiroteio, ao qual apenas sobrevivem Zhang e o colega Wang (Yu Ailei). Com a carreira e casamento arruinados, Zhang entrega-se ao álcool e ao trabalho com segurança. À viúva de Liang, Wu (Lun Mei Gwei) são entregues as cinzas. O caso é enterrado. Eis que cinco anos depois, começam a surgir de modo idêntico, membros de corpos no meio de carregamentos de carvão por toda a região. Zhang alia-se ao colega para resolver em definitivo o caso e reavivar a chance de um regresso à carreira policial. Tendo ligação a Wu a misteriosa viúva de Liang, Zhang fica convencido que nela se encontra a resolução do caso e começa a segui-la.

“Black Coal Thin Ice” é um filme difícil já que ali nada há de sonho ou de encantador. Entre a aridez poluída da mina de carvão e o ar gélido com queda de neve constante, que se sente até às entranhas, não existe um único elemento de conforto. Nem ninguém é feliz. E se aparentar tal coisa, ainda mais rápido lhe cai a máscara. Subsiste uma aura de resignação e condenação. A ideia de que estas foram as cartas que o destino traçou e é com estas que os personagens terão de se governar está permanente durante todo o filme. Não existe nada mais do que a realidade que conhecem.
Para a viúva Wu, jovem, bonita e inteligente, não há a possibilidade de aspirar a mais do que a pequena lavandaria de bairro ou de pensar num segundo matrimónio. Não faz parte do seu plano de vida. Não dá para ver tão longe. Não dá para ver mais longe além da neve que cai. De igual modo Zhang era a profissão e a relação que tinha e lhe foram retirados. Sem eles sobrevive. Sem eles não há mais nada. A resolução dos casos encontra-se num segundo plano, abaixo das intenções egoístas dos seus protagonistas. Em particular, no caso de Zhang, um meio para um fim. “Black Coal Think Ice” não vai muito além do rótulo de neo-noir. Os papéis estão bem definidos. Wu é a femme Fatale, Zhang é o detective anti-herói. Esta última personagem é também a mais divisiva, já que ele comete demasiados erros, que vão desde o desleixo até uma incapacidade quase primitiva de juntar alguns factos. Ser polícia pode estar-lhe no sangue, as capacidades inquisitivas nem tanto. Digamos que não é nenhum Humphrey Bogart. Quanto ao mistério, esse, não é excessivamente complicado se retirarmos parte do jogo do gato e do rato entre os dois protagonistas e uma narrativa que tende a complexificar-se, para esconder o facto de que a verdade é afinal simples. Com 106 minutos de duração “Black Coal Thin Ice” consegue parecer tão longo quanto um filme que complete as duas horas. Aí reside porventura o seu maior problema, tentar parecer mais complexo do que o é ao invés de se focar naquilo que o tornou interessante desde o início, um descendente directo do género noir tendo por cenário a China industrializada do séc. XXI e as suas idiossincrasias. Três estrelas.

Realização: Diao Yinan
Argumento: Diao Yinan
Liao Fan como Zhang Zili
Gwei Lun-Mei como Wu Zhizhen
Wang Xuebing como Liang Zhijun
Yu Ailei como Wang

Próximo Filme: "Haunted Universities" (Mahalai Sayongkwan, 2009)
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