terça-feira, 29 de setembro de 2020

Suores Frios - "Não abandonem os animais" - por Manuel Reis

Quando a Rita me convidou para escrever um texto para o blog dela, pensei logo que não vejo regularmente terror (nem filmes asiáticos). Mas a categoria foi aberta à "angústia", e aí… há alguma coisa.

Posso considerar que a minha infância cinéfila foi segura q.b., com muita animação da Disney, da Warner/Turner/MGM, algumas coisas europeias e canadianas… e alguns filmes já para maiores de 12 ou 16 - acho que vi o Robocop pela primeira vez quando tinha 6 anos, e os braços a explodir eram fixes, mas não tinha discernimento para perceber que aquilo não devia ser transmitido aos sábados à tarde na televisão.

Mas, indo para a animação, os meus pais acharam por bem enfiar-me pela goela abaixo os clássicos da Disney - uma decisão bastante responsável, até, durante o período renascentista da animação do Grande Rato (salvé, ó Grande Rato, nosso poderoso líder). Adorei o Aladdin, o Hércules, o Toy Story (que, não sendo ainda da Disney, era distribuído por eles e está lá, junto dos Clássicos). Anteriores à Renascença, até há outros dos quais gostei bastante: o Rato Basílio, Bernardo e Bianca, 101 Dálmatas (que é, para mim, um filme obrigatório)… Se não corri todos, corri boa parte. E isso incluiu um filme com alguma importância na história da empresa: Papuça e Dentuça.

Para quem não sabe qual é a história (obviamente, este resumo contém spoilers): Uma raposa (Tod/Dentuça) fica órfã e outros animais do bosque começam a tomar conta dela. Eventualmente, a raposa é adoptada por uma velhota. Problema: a velha vive ao lado de um caçador, que tem armas e cães de caça. Um desses cães, ainda cachorro (Cooper/Papuça) torna-se melhor amigo de Tod, enquanto ainda são jovens. Eventualmente crescem, Cooper é educado como sendo apenas e só um cão de caça, que não pode ser amigo dos animais que vai matar, e a velha abandona Tod… numa reserva de caça (porque era mais seguro para a presa do que estar a viver - literalmente - ao lado do caçador).

Lembro-me de ver isto e de ter chorado bastante (foi algures entre os 5 e os 9 anos de idade). Eu cresci numa família em que a presença de um cão (e, eventualmente, de mais) era obrigatória, mas sempre com a pedagogia que se deve incluir quando há um animal de estimação: ele faz parte da família, não é abandonado nem pode ser maltratado. E estava a ver ali o oposto disso. Por muita motivação que houvesse na história para que isso acontecesse, foi doloroso ver aquilo.

O filme é adaptado de uma fábula para adultos, The Fox and The Hound, de Daniel P. Mannix, que é muito mais negra e profunda do que a versão mais aguada que a Disney exibiu nas salas. Mesmo a própria Disney acabou por fazer uma alteração ao seu plano original de adaptação deste romance para um tom mais familiar.

Foi um penso rápido, que acaba por ser simbólico para o filme e para a história dos Clássicos da animação da Disney, dado que o seu longo processo de produção marcou a transição entre a equipa de animadores que originou os estúdios e uma nova equipa de animadores (de onde constavam nomes como Brad Bird ou John Lasseter) que, eventualmente, acabou por marcar a Renascença da Disney nos anos 90, a integração da animação CGI e, eventualmente, da Pixar, com todas as mudanças que estes últimos 30 anos causaram nesta abordagem da animação infanto-juvenil: uma subida de nível no tratamento intelectual das crianças ou a escrita de diálogos (e o casting de vozes conhecidas do grande público) para incluir toda a família… com algumas sensações agridoces pelo meio. 

Mas isto é sobre mim: o filme causou-me dor durante alguns dias após tê-lo visto pela primeira vez. Já não me lembro se tive pesadelos, mas foi um filme que me marcou bastante. Tentei vê-lo uma segunda vez, ainda quando era puto, mas não deu. E fiquei com o trauma até hoje: não pego no filme há mais de 20 anos, e nem com a Disney+ lhe vou pegar. Talvez, daqui a muitos anos, quando tiver catraios a quem tenha de dar formação cívica e cinéfila. E, mesmo assim, Papuça e Dentuça não estará na lista de prioridades.

Manuel Reis já escreveu em blogs, faz podcasts e estuda Publicidade e Marketing. Vê demasiadas séries de televisão, e gosta de falar sobre elas. Podem seguir o que ele diz e faz no Twitter  ou em jaaseguir.blogs.sapo.pt.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Suores Frios - "O Nokia de Blair Witch" - por Carlos Reis

Não gosto de filmes de terror. Ou melhor, não gosto de ver filmes de terror. Entrei nesta negação quando com onze ou doze anos apanhei "O Dentista" de Brian Yuzna a passar por volta da uma da manhã na TVI e, deitado na cama, às escuras no meu quarto, fiquei a vê-lo até ao fim. Sei lá porquê. Tanta coisa melhor que me fez adormecer ao longo das últimas três décadas no sofá, na cama, na cadeira do computador, até sentado no chão com miúdos com cólicas ao colo. Mas este fiquei até ao fim. Resultado? Anos de pesadelos inexplicáveis relacionados com dentistas. Eu que até sempre gostei - e ainda gosto - de ir ao dentista. Mas naquelas noites que acordava com "suores frios", ou era o Schwarzenegger de metrelhadora e peito ao léu a disparar contra um autocarro comigo lá dentro - e sim, tive este pesadelo várias vezes, acordando em pânico no exacto momento em que era atingido -, ou vinha o ca**ão do dentista despachar-me, comigo imóvel naquele cadeirão deitado, congelado e imobilizado por um qualquer anestésico. Vieram anos e anos a comer cinema ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Nunca nada que tivesse pinta de pregar um cagaço ou outro. Nem o raio dos clássicos que todos falavam, dos Sextas-Feiras 13 ao Exorcista, dos Halloweens ao Poltergeist. Tudo muito bonito até ao momento em que me apaixonei pela minha mulher e, depois de passar o ponto de não-retorno, percebi que ela só gostava de filmes de terror. Tudo o resto adormecia em cinco minutos, fosse na sala de cinema ou em casa.

Lá tive que descobrir tudo o que tinha ficado para trás. Os clássicos, as estreias, os mais refundidos, os asiáticos, os raios que os partam. Até que chegou o dia, ou melhor, a noite, que me traz aqui. A noite em que metemos uma cassete VHS d'"O Projecto de Blair Witch". Sozinhos em casa, ali numa noite de verão durante o Euro 2004. Todos sabem do que se trata, não é preciso grandes apresentações. Remeto-vos já para a cena final. Lembram-se? Uma personagem possuída, em pé, num canto de uma casa abandonada no meio do mato, cabeça e braços para baixo. "Borrei (não literalmente, felizmente) a cueca", para não variar. Duas ou três da manhã, finito, vamos dormir: ela ri-se do que viu, eu estou tão incomodado quanto arrepiado. "Mas para que é que vejo estes filmes?", pensei uma vez mais. Fechamos os olhos, adormecemos.

Sono profundo. Uma, duas, três, sei lá quantas horas passam. Sinto movimento, oiço um barulho, descerro um dos olhos para espreitar o que se passa. O que vejo dispara-me o coração para fora do peito, como nunca antes - ou depois - na minha vida. A minha mulher (então namorada) no canto do quarto, cabeça e braços para baixo. Cabelo longo, como se fosse uma japonesa qualquer possuída do "Ringu". Caio da cama, começo aos gritos, acordo o prédio inteiro. Ela assusta-se tanto com a minha reacção quanto eu com a presença dela naquele canto. Pensei que tinha sido uma partida dela e estava pronto para a matar. Mas não, afinal tinha ido pôr um daqueles tijolos com Snakes chamados Nokias 3210 a carregar. Estava, segundo ela, há horas a fazer aquele apito irritante de bateria baixa de cinco em cinco minutos. Foi uma coincidência dos diabos - ou das bruxas, para ser mais preciso com o filme em causa. Foi o susto de uma vida. E voltei a fechar a porta ao terror. O amor também tem limites. Mais de quinze anos sem rever esta cena e, só de escrever este texto, lembro-me dela como se fosse ontem. Mas porque é que alguém vê filmes de terror? Explicam-me?

Autor do blogue Cinema Notebook: http://cinemanotebook.blogspot.com
Co-autor do podcast Nas Nalgas do Mandarim: http://nasnalgasdomandarim.pt
Co-autor dos anuários "Videoclube do Sr. Joaquim": https://www.facebook.com/SenhorJoaquim

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Suores Frios "Por entre Dois Dedos num assento de Veludo - por Tomás Agostinho

 


É curioso pensar que o carácter natural de um filme tem muito pouco a ver com a nossa relação de tensão com o mesmo. Lembro-me ainda antes de pensar em redigir este texto que as imagens que mais me assolam, que induzem medo não são necessariamente aquelas cuja natureza intrínseca o parece exigir, vulgo filme de terror. Associar um género a uma sensação, de certo modo tónica, não é atípico no cinema. As emoções básicas do ser humano encontram-se perfeitamente delineadas como respostas emocionais padrão enquadradas num determinado género – seria até estranho que assim não o fosse quando nos sentamos num determinado filme. Comédia é para rir; drama é para chorar; terror é para amedrontar. Porém é igualmente sabido que o binómio género/emoção enquanto carácter meramente dual e exclusivo é pouco expressivo. Mais interessante é um filme, à parte da sua sensação essencial, conter uma confluência de outras. É nesta fusão que se abre um espaço para as leituras não tónicas. Estas interpretações emocionais são afectadas pelo contexto do tempo e do espaço de cada pessoa que vê o filme. As obras não são apenas produtos do seu tempo; são igualmente frutos da nossa relação com as mesmas. 

Exemplo claro disto são os filmes de terror de outra época que semeavam o medo junto dos seus espectadores incautos e que hoje se oferecem mais como memórias e registos, cápsulas do tempo de técnicas narrativas e estilísticas que despoletavam essas reações. Uma outra instância destas leituras são os filmes que vincaram a nossa infância. Não falamos apenas de um elemento nostálgico que adorna as películas em visualizações futuras, mas sim de uma verdadeira memória fantasma de uma reação que não se desvincula do objecto. Tomo como exemplo pessoal e enquadrado na temática deste espaço editorial, Harry Potter and the Chamber of Secrets (2002). 

Naquela sessão da tarde, ainda no antigo cinema das Amoreiras, via o filme com a minha mãe, onde tive que lhe pedir – entre lágrimas e um eminente ataque de ansiedade – que me levasse dali para fora, voltando – decidido de o terminar e vencer o medo – ao filme após o intervalo (será que houve intervalo? – os detalhes escapam-me). Em causa, tantos anos depois, e de interesse para este texto não está apenas o carácter das cenas que me levaram a tal reação. Não é difícil entender que para uma criança de nove anos o filme contém o necessário para gerar tal resposta neuronal. Na análise deste fenómeno o mais curioso talvez seja a memória que ficou do mesmo. Tendo voltado à sala depois do intervalo, numa (semi) vã tentativa de controlar a ansiedade – digo vã, na medida em que se revelou uma tentativa infrutífera, porque apesar de aguentar até ao final, fui frequentemente assombrado pelas imagens do mesmo durante os dias seguintes –, esse esforço (a luta pelo controlo) acabou por produzir um resultado inesperado: não me lembro da segunda metade do filme, dessa primeira visualização – dir-se-ia que fui o alvo perfeito de um dos encantamentos de amnésia do professor Lockhart. A minha memória do filme tomou para si a natureza da estrutura de todas as memórias: absolutamente lacunar. Seria a caricatura das minhas rememorações cinematográficas. Espantosamente, nos anos que se seguiram e antecederam uma segunda visualização – desta vez mais controlada e “completa” – fui criando imagens fantasmas de cenas, que sei agora não existirem, de modo a preencher as lacunas narrativas da minha memória. Porém, encontrava-me firmemente convicto que existiam. Lembro-me, inclusive, de comentar que teria visto uma versão diferente do filme. E vi, na minha cabeça, com o medo como projector das imagens. Mantém-se até hoje como uma das minhas experiências mais radicais no grande ecrã, evidenciando apenas o poder do medo na manipulação da percepção do passado e na falência do controlo do presente. 


Lisboa, Setembro (sob o medo da quarentena mundial) de 2020,
Tomás Agostinho

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