segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Suores Frios - "O Nokia de Blair Witch" - por Carlos Reis

Não gosto de filmes de terror. Ou melhor, não gosto de ver filmes de terror. Entrei nesta negação quando com onze ou doze anos apanhei "O Dentista" de Brian Yuzna a passar por volta da uma da manhã na TVI e, deitado na cama, às escuras no meu quarto, fiquei a vê-lo até ao fim. Sei lá porquê. Tanta coisa melhor que me fez adormecer ao longo das últimas três décadas no sofá, na cama, na cadeira do computador, até sentado no chão com miúdos com cólicas ao colo. Mas este fiquei até ao fim. Resultado? Anos de pesadelos inexplicáveis relacionados com dentistas. Eu que até sempre gostei - e ainda gosto - de ir ao dentista. Mas naquelas noites que acordava com "suores frios", ou era o Schwarzenegger de metrelhadora e peito ao léu a disparar contra um autocarro comigo lá dentro - e sim, tive este pesadelo várias vezes, acordando em pânico no exacto momento em que era atingido -, ou vinha o ca**ão do dentista despachar-me, comigo imóvel naquele cadeirão deitado, congelado e imobilizado por um qualquer anestésico. Vieram anos e anos a comer cinema ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Nunca nada que tivesse pinta de pregar um cagaço ou outro. Nem o raio dos clássicos que todos falavam, dos Sextas-Feiras 13 ao Exorcista, dos Halloweens ao Poltergeist. Tudo muito bonito até ao momento em que me apaixonei pela minha mulher e, depois de passar o ponto de não-retorno, percebi que ela só gostava de filmes de terror. Tudo o resto adormecia em cinco minutos, fosse na sala de cinema ou em casa.

Lá tive que descobrir tudo o que tinha ficado para trás. Os clássicos, as estreias, os mais refundidos, os asiáticos, os raios que os partam. Até que chegou o dia, ou melhor, a noite, que me traz aqui. A noite em que metemos uma cassete VHS d'"O Projecto de Blair Witch". Sozinhos em casa, ali numa noite de verão durante o Euro 2004. Todos sabem do que se trata, não é preciso grandes apresentações. Remeto-vos já para a cena final. Lembram-se? Uma personagem possuída, em pé, num canto de uma casa abandonada no meio do mato, cabeça e braços para baixo. "Borrei (não literalmente, felizmente) a cueca", para não variar. Duas ou três da manhã, finito, vamos dormir: ela ri-se do que viu, eu estou tão incomodado quanto arrepiado. "Mas para que é que vejo estes filmes?", pensei uma vez mais. Fechamos os olhos, adormecemos.

Sono profundo. Uma, duas, três, sei lá quantas horas passam. Sinto movimento, oiço um barulho, descerro um dos olhos para espreitar o que se passa. O que vejo dispara-me o coração para fora do peito, como nunca antes - ou depois - na minha vida. A minha mulher (então namorada) no canto do quarto, cabeça e braços para baixo. Cabelo longo, como se fosse uma japonesa qualquer possuída do "Ringu". Caio da cama, começo aos gritos, acordo o prédio inteiro. Ela assusta-se tanto com a minha reacção quanto eu com a presença dela naquele canto. Pensei que tinha sido uma partida dela e estava pronto para a matar. Mas não, afinal tinha ido pôr um daqueles tijolos com Snakes chamados Nokias 3210 a carregar. Estava, segundo ela, há horas a fazer aquele apito irritante de bateria baixa de cinco em cinco minutos. Foi uma coincidência dos diabos - ou das bruxas, para ser mais preciso com o filme em causa. Foi o susto de uma vida. E voltei a fechar a porta ao terror. O amor também tem limites. Mais de quinze anos sem rever esta cena e, só de escrever este texto, lembro-me dela como se fosse ontem. Mas porque é que alguém vê filmes de terror? Explicam-me?

Autor do blogue Cinema Notebook: http://cinemanotebook.blogspot.com
Co-autor do podcast Nas Nalgas do Mandarim: http://nasnalgasdomandarim.pt
Co-autor dos anuários "Videoclube do Sr. Joaquim": https://www.facebook.com/SenhorJoaquim

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