segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Suores Frios - "O Cristal Encantado: o lado negro do Jim Henson" - por J.B. Martins

Tal como aconteceu com tantas outras crianças nascidas em meados dos anos oitenta, as criações do Jim Henson foram um pilar essencial na minha formação e permitiram-me, por exemplo, transformar sons em letras e essas letras em palavras muito antes de iniciar a escolaridade obrigatória. 

A bonecada do Jim Henson eram um porto seguro, uma espécie de segunda família com a qual podia aprender tudo o que precisava para singrar nesses primeiros anos como habitante deste bonito planeta azul. Algumas das minhas primeiras (e mais felizes!) recordações audiovisuais envolvem o Cocas, o Gualter, o Becas e o Egas ou o Conde de Kontarr. Mas, como estava prestes a descobrir, nem tudo eram rosas no mundo do Jim Henson.

Não me lembro ao certo quando tive o primeiro contacto com O Cristal Encantado (The Dark Crystal, no original) mas sei que nada me tinha preparado para aquele momento.

O mundo de O Cristal Encantado não é aquela rua castiça onde aprendemos os valores da igualdade e da tolerância e onde o mal não passa de um conceito abstrato. Este é um planeta em ruínas liderado por seres cujo poder está assente na destruição das outras espécies. Aqui não há sinal das criaturas afáveis e coloridas a que a casa Henson nos habitou. Aqui mandam os Skeksis, uma espécie de abutres asquerosos e desprezíveis que se arrastam e grunhem de uma forma que até hoje me faz gelar a espinha. 

São várias as cenas protagonizadas pelos Skeksis que me assombraram durante anos e nem é preciso esperar muito.

Logo nos primeiros minutos do filme vemos como o seu líder se desfaz em pó rodeado pelos outros membros do clã que, entre sussurros, aguardam com expetativa o momento perfeito para assumirem o poder, numa cena que lembra a icónica morte do antagonista na primeira aventura do Indiana Jones. 

Mas o momento que mais me marcou foi a sequência em que um Podling (umas das espécies que os Skeksis se divertem a maltratar) definha à nossa frente enquanto a sua energia vital é sugada e transformada num elixir que serve como alimento aos Skeksis e os ajuda a perpetuar a sua imortalidade.

No entanto, se este tipo de reação já seria expectável nos “maus da fita”, a verdade é que os “bons da fita” também não me inspiravam muita confiança, embora neste caso a rejeição estivesse mais relacionada com o desenho das personagens do que com as suas motivações. Os Gelflings, com as suas características demasiadas humanas e os seus olhos sem um pingo de vitalidade, caiam em cheio no “vale da estranheza” e a Aughra, com o seu olho “destacável”, era demasiado intimidante para um petiz que só queria que o Poupas aparece a voar a qualquer momento para salvar o dia.

Feitas as contas e passados todos estes anos, O Cristal Encantado é o exemplo perfeito da eficácia das marionetas e dos efeitos especiais orgânicos dos anos 80 à hora de mexer com o nosso subconsciente. Existem, mexem-se e estão realmente lá. São muito mais que zeros e uns sobrepostos num ecrã verde: são o material com que são feitos os sonhos... e os pesadelos.

(O J.B. Martins é sobretudo um indivíduo que fala de cinema na internet. Começou com um blogue, no longínquo ano de 2003, mas de há uns tempos para cá pode ser acompanhado no YouTube através do canal CINEBLOG)


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Suores Frios - " Pesadelo num copo de água" - por Pedro Miguel Fernandes

Nunca fui um grande fã do cinema de terror. Talvez o facto de ter sido um miúdo com medo de tudo e mais alguma coisa não me tenha ajudado no futuro a admirar e desbravar o género como fiz com outros mais tarde, à medida que ia descobrindo essa fantástica arte chamada cinema e os seus maravilhosos recantos. E se há altura ideal para termos medo destas coisas é precisamente quando somos garotos, mais tarde perde um bocado a piada com a perda da inocência. Mesmo quando acontece darmos um salto na cadeira do cinema à conta de um susto daqueles à séria quando aparece algum malandrão em cena sem avisar, acaba por se seguir um sorriso nervoso como quem diz ‘sacanas, enganaram-me, mas não me dão pesadelos que eu já não tenho idade para essas coisas’. Isto não significa que não me aventure uma vez por outra neste universo e por vezes até calha gostar de alguns títulos e há alguns realizadores que merecem muito do meu respeito. Mas se alguém me perguntar ‘então Pedro, vai uma fita de terror?’ há um grande grau de probabilidade de levar uma nega. A não ser que seja difícil resistir a sessões especiais em que o desafio seja algo como ver a trilogia Evil Dead pela noite fora com um grupo de amigos ou ir ao templo dos fãs de cinema de terror chamado Motelx para ver como param as modas no universo do terror. Moral da história: sustos e calafrios em miúdo com filmes de terror não houve muitos porque me afastava sempre deles como aquele sujeito com os dentes pontiagudos da cruz.

Contudo…como diria o outro, ‘no entanto, ela move-se’ e há um episódio marcante na minha infância que junta medo e uma sala de cinema: nem mais nem menos do que a minha primeira recordação que tenho de ver um filme num ecrã de cinema. Não me perguntem onde foi porque não sei onde terá sido, apenas me lembro do título do filme. Era o Indiana Jones e A Última Cruzada e nada melhor do que uma estreia no cinema do que o filme de uma personagem que permanece uma das minhas favoritas de sempre. Ou então não. Já antes, ao ver o anterior Indiana Jones e O Templo Perdido, tinha ficado aterrorizado com refeições com vida própria e a presença do mauzão de serviço, aquele que arrancava corações às criancinhas e cujo nome não me vem agora à memória. Mas nada me tinha preparado para ver um sujeito a ser transformado em esqueleto mesmo à frente dos meus olhos num ecrã gigante. A imagem ficou de tal forma retida na minha mente que a partir de então cada vez que ia buscar um copo para beber água demorava horas a decidir qual o copo correcto, não fosse acontecer alguma coisa estranha comigo.

Escusado será dizer que hoje em dia já nada disto me impressiona. Continua a ser um divertimento garantido ver qualquer um dos filmes da saga como aquando da primeira vez (descontando aquela coisa que fizeram com o puto dos Transformers a fazer de filho do Indy, que não apenas me suscita algumas palpitações de raiva), mas agora sem ter medo de esqueletos, cobras e alimentos esquisitos. Os medos agora são outros e os calafrios vêm de outros sítios, nenhum deles situado numa tela gigante ou pequeno ecrã caseiro. A idade tem destas coisas e das coisas que mais sinto falta desses primeiros anos é precisamente esse misto de fascínio e medo que tínhamos em miúdos perante aquelas imagens que hoje provavelmente nos fazem rir ou pelo menos passámos a vê-las com um sorriso nostálgico nos lábios. Mas ao menos já consigo ir buscar um copo de água sem passar uma eternidade a tentar escolher o copo certo.

Pedro Miguel Fernandes 

ex-blogger A Última Sessão (http://a-ultima-sessao.blogspot.com/) e Shut Up and Watch the Movies (http://shutupandwatchthemovies.blogspot.com/)


terça-feira, 13 de outubro de 2020

Suores Frios - "A Imparável Marran" - por Daniel Reifferscheid

Admiro bastante a estratégia que os meus pais desenvolveram para guiar o meu consumo mediático enquanto petiz - nada estava propriamente proibido, e podia inclusive ficar na sala enquanto eles viam coisas que muitos pais não deixariam chegar perto dos seus filhos (filmes do Bunuel, Rocky Horror Picture Show, o 200 Motels do Frank Zappa), mas ao mesmo tempo tudo era contextualizado, não havia consumo passivo. Podia por exemplo vibrar à vontade com as aventuras do Batman, mas ao mesmo tempo o meu pai me explicava porque é que discordava de uma abordagem punitiva ao crime, e que problemas tinha com a história de um milionário que passa o seu tempo a violentar pessoas com distúrbios mentais. Pode soar ridículo, mas em retrospectiva estou muito grato por me terem criado assim - tive o prazer de consumir toda e qualquer cultura Pop, sentindo-me ao mesmo tempo confortável em aceitar que há mensagens inerentes a muita coisa que consumo nas quais não me revejo minimamente. 

Ao mesmo tempo, creio que os meus pais tiveram o seu trabalho facilitado pelo seguinte factor: terem um filho medricas.

Quando fui gentilmente convidado a participar nesta coluna, o maior problema que se me colocou imediatamente foi: como escolher? A minha infância está recheada de pequenos traumas, noites em branco fruto de todo o tipo de entretenimento. E claro que, crescendo numa aldeia em S. Miguel, não era preciso muito para passar por cobarde - finda a escola primária, todos os meus colegas já tinham digerido as franchises Halloween, Friday The 13th e Nightmare On Elm Street completas. Filmes de terror desses “a sério” eu nem me aproximava, mas mesmo assim conseguia aumentar medos e ansiedades com todo o tipo de monstrengos: temia principalmente vampiros (tanto que escrevinhava crucifixos nas paredes do meu quarto, levando a minha mãe a perguntar-se se tinha dado em gótico ou cristão), mas também havia espaço para o culto assassino em Young Sherlock Holmes (1985), para o Jabberwocky de Terry Gilliam e para os dois segundos e meio que apanhei sem querer do desenho animado Tales From The Cryptkeeper.

Parece que não havia história inofensiva o suficiente para não a conseguir transformar numa ameaça quando era pequeno. Nem mesmo uma adorada franchise infantil finlandesa. 

A série Mumin não dirá muita coisa a um público português, mas em grande parte da Europa são tão adorados como qualquer Clube das Chaves ou Uma Aventura, e com muita boa razão: os livros originais, escritos pela finlandesa Tove Jansson, são da melhor literatura infantil que existe e, arrisco-me a dizê-lo, da melhor literatura do século vinte, ponto. Para dar só um cheirinho, eis a génese desta simpática família de trolls com aspecto de hipopotámo: aos treze anos, a jovem Tove teve uma discussão violenta com o irmão mais velho acerca do filósofo alemão Kant. Tão enraivecida estava ela que marchou para a casa de banho, sacou de um lápis e desenhou na parede a criatura mais feia que conseguiu conceber - e assim nasceu a família Mumin.

Com esse contexto, já devem ter adivinhado que as histórias de Jansson não são contos infantis genéricos: são histórias carregadas de uma profunda melancolia, e cujas personagens frequentemente exibem problemas a tender para o existencial. Como tal, a Marran (Morra em alemão, Groke em inglês), espécie de vilã dessas histórias (o rótulo é na verdade bastante redutor) também não exibe os traços de um mauzão típico. Não é motivada pela ganância nem pela vontade de destruir o mundo; não irrompe em ataques de raiva; não possui capangas nem esquemas. É, tão somente, uma criatura negra, redonda, que traz a miséria a tudo que toca. 

Esta criatura aparece em vários livros da série, mas o meu contacto com ela enquanto criança veio principalmente através de uma parte da adaptação para anime da saga: nesta, os Mumins conhecem dois pequenos duendes que usam a casa da família como asilo após terem roubado algo que pertence à Marran. Inevitavelmente ela aparece para reaver o que lhe foi roubado; a família defende os pequenos duendes, mas negociar com a entidade parece impossível.

Como sempre nestas coisas, a minha lembrança é bastante diferente do que realmente acontece no episódio, que pode ser visto aqui (https://youtu.be/O-WWdLx0V1Y) - , disponibilizado gratuitamente pela conta oficial dos Mumins. Na minha memória, o confronto final entre os protagonistas e a Marran, com o pai Mumin de espingarda à porta, acaba com o monstro simplesmente a retrair-se, por razões obscuras, deixando muito claro que as acções da família são irrelevantes para a questão; na verdade, a Marran retira-se porque o pai Mumin lhe dá alguns segundos após os quais irá disparar. Pior ainda, a Marran despede-se com um Schwarzeneggeriano “I’ll be back!”; na minha memória era um monstro completamente mudo.

Mas mesmo assim, consigo ainda sentir um pouco daquilo que me aterrorizou em pequeno: a Marran como uma ameaça fatalista, que mais cedo ou mais tarde irá triunfar (a própria narração do episódio sugere isso); e também uma ameaça que vai para além da razão, com a qual é impossível comunicar, quanto mais negociar. Devo mencionar que a série animada dos Mumins não é tida em muito boa conta entre os apreciadores das obras de Jansson - a animação é bastante limitada e os enredos não completamente fieis à autora. No entanto, estaria a mentir se dissesse que parte do impacto que teve sobre mim não se deveu à interpretação que a série fez. Na versão que eu vi (existem várias) era negra, com um sorriso vazio estampado na cara. Some-se a isso também a banda sonora - ao reouvir o seu tema (https://youtu.be/jHyR8kD2Uuw) hoje detecto uma semelhança com algumas das composições mais macabras de Ennio Morricone (Le Trio Infernal - https://youtu.be/WzKYIIBLPbc, por exemplo), mas com um travo synth mais pronunciado.

Nos livros, a criatura acaba por ser mais ambígua - condenada ao frio e à solidão pela natureza, por vezes pode ser ouvida a uivar de desgosto, sozinha na floresta. De facto não existem verdadeiros vilões nem heróis num universo soficticado como o de Janssen. Mas nos meus pesadelos, será sempre uma ameaça imparável, a aproximar-se…e aproximar-se…

Daniel Reifferscheid é o anfitrião do podcast de cinema português Prestes A Ver (prestesaver.libsyn.com), bem como do programa de rádio You Know The Score, especializado em bandas sonoras, transmitido na Rádio Quântica. Aos trinta e cinco anos tem orgulho em dizer que já consegue ver filmes da Hammer sem ter medo e que, chegado aos quarenta, deverá estar pronto para experimentar o The Exorcist


quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Furie (Hai Phuong, 2009)

As 3 fúrias são 3 figuras da mitologia grega e, mais tarde romana, cuja estória de origem difere mas, no essencial, ligadas ao submundo, que perseguem com um espírito de justiça vingador as pessoas malévolas. Pretende-se, através do temor a estas que as pessoas não tenham atitudes condenáveis a nível moral e societal como o homicídio, ofensas contra os deuses, conduta pouco filial ou perjúrio.

Hai Phuong, interpretada por Veronica Ngo, mais conhecida a nível internacional pelo pequeno mas impactante papel de Paige Tico e, mais recentemente, como Quynn em The Old Guard é a Fúria titular. Algures um executivo considerou que manter o nome da personagem não traduziria bem para as audiências internacionais mas o que é que eu sei de marketing para cinema? Hai Phuong é uma ex-gangster que largou a vida do crime e mudou de cidade após descobrir que estava grávida. Nesta nova encarnação a pobreza e um trabalho legal, mas demasiado próximo para conforto da antiga vida que abandonou - faz a cobrança de dívidas -, valem-lhe a censura da filha Mai (Mai Cát Vi) e a desconfiança dos locais. Num raro momento em que questiona a inocência da filha, acusada de um roubo que não cometeu, esta foge e acaba por ser raptada por bandidos. Para Hai Phuong é impossível assistir de forma impávida e serena, promovendo uma perseguição implacável para reaver a sua filha antes que seja tarde demais.

Se Furie parece familiar é porque já vimos outros filmes de mães-coragem lutando, contra tudo e todos, para reaver a sua prole. Mas e se vos disser que a Veronica Ng já fez este filme antes e melhor? Em 2009, Ng fez o filme "Clash", cuja apreciação podem encontrar neste mesmo blog, com Johnny Tri Nguyen, um actor praticante do Vovinam (arte marcial vietnamita), em que Ng, que também integrava o submundo do crime tentou resgatar a filha das mãos de um barão do crime. As cenas de acção corpo-a-corpo eram pelo menos mais realistas e o final surpreende.

Furie, lamento dizê-lo, aparte uma perseguição de mota ao longo de um rio e da capacidade da actriz de nos bombardear com torrentes de água oriundas dos seus canais lacrimais - juro que pensei que ninguém conseguia fazer concorrência às actrizes coreanas -, é uma desilusão. Sim, há cenas em que o elenco pouco mais que secundário, além de Hai Phuong e de um polícia que decide apoiá-la dá mostras de atleticismo, no entanto, a coreografia fica aquém do que já se fazia em 2009. Com isto, não menosprezo a importância de uma arte marcial menos conhecida ter atenção no palco mundial, à semelhança do que sucedeu em 2011 com "The Raid: Redemption", para mais, quando esta demonstra um nível de realismo longe das encenações graciosas de kung fu de inícios do milénio que já cansam e se aproxima mais do fenómeno John Wick (2014) ou Atomic Blonde (2017). A violência é esperada e quase glamorizada, os golpes são vistos e quase sentidos, o argumento é muitas vezes mínimo, com pequenas pausas para respirar, ao encontro das expectativas das audiências dos novos filmes de acção de 2010 em diante.

O argumento de Furie, não é muito exigente, dando total enfoque à missão de Hai Phuong, sendo pontuado pelos clichés do bandido que surge das brumas de um passado tenebroso para se vingar de ofensa cometida e dos familiares que foram deixados para trás, a quem se pede auxilio em altura de desespero, como se preencher os pontos de uma checklist se tratasse. Por isso, fico também, muito surpreendida com a comoção em torno de Furie. Se a relativamente nova fama de Ngo atrair as atenções para o cinema vietnamita tanto melhor mas, não se enganem pensando que Furie constituirá uma obra superior. Duas estrelas e meia.


Realizador: Le-Van Kiet
Argumento: Kay Nguyen
Veronica Ngo como Hai Phuong
Mai Cát Vi como Mai
Thanh Nhien Phan como Capitã Vu Trong Luong
Pham Anh Khoa como Truc
Kim Long Thach como Huy
Khanh Ngoc Mai como Ngoc
Hoa Thanh como Thanh Wolf

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