Quando me foi proposto invocar um filme que, de algum modo, me tivesse causado singular impressão física após a sua visualização, nunca imaginei que tal tarefa se apresentasse tão custosa. Talvez por não ser, desde os meus “verdes anos”, pessoa particularmente impressionável por imagens em movimento projectadas no grande ecrã (“it's only a movie”, tal como Hitchcock bem ajuizava), não fui capaz, durante imenso tempo, de nomear um título que – e citando o repto do “convite” – “contenha um momento que te fez tremer, ter pesadelos, ou de que não conseguiste parar de pensar durante os dias seguintes ou, se fores mais para o “forte” te desconcertou”.
Honesta e curiosamente, na minha vida, tais sensações pareceram provir apenas de experiências televisivas: a saber, V (mini-série de terror e ficção científica, exibida em meados da década de 80) e as primeiras temporadas de Twin Peaks. De resto, o horror cinematográfico raramente me suscitou um inesquecível assomo de “agitação física”; obras como O Exorcista (The Exorcist) ou História de Duas Irmãs (Janghwa, Hongryeon) estão, definitivamente, entre os meus eleitos do género, todavia são filmes que me perturbam mais pelo teor implícito que revelam do que pelo seu grafismo.
Mas, de facto, e na minha idade adulta, há um filme que toca a (má) reacção pós-visionamento: Anticristo (Antichrist), de Lars von Trier. Saído do Festival de Cannes 2009 envolto em acalorada polémica, e o fruto da luta do realizador contra uma depressão que quase o incapacitou de trabalhar, Anticristo é veículo de terror – psicológico e sobrenatural – apropriadamente sombrio e grotesco, e um alvo fácil de escândalo mediático pela misoginia intensa e violência gráfica que patenteia.
Desde a sua sequência inicial, percebemos que von Trier não poupa nada nem ninguém. Filmada em extremo slow motion, somos confrontados com o êxtase de uma cena de sexo entre o casal protagonista (Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, aqui somente designados como Ele e Ela), um momento de “distracção” durante o qual o bebé do casal cai, fatalmente, de uma janela aberta. Crivada pela mágoa, Ela sucumbe a profunda depressão, responsabilizando-se pela perda e encarando a calma do marido como insensibilidade. Ele, um terapeuta experiente, decide assumir o tratamento da esposa e, durante este processo, decide que a viagem a uma cabana isolada — apelidada de Éden — no meio da floresta ajudará à sua recuperação psicológica.
Assiste-se, de seguida, ao definitivo confronto físico e espiritual entre o casal que, rapidamente, evolui para a violência conjugal impiedosa, para um horror de índole realista e no sentido de uma “estética da agressão” que, na raia da pornografia, leva ao extremo a dicotomia sexo/morte.
A sua conclusão, de toada incerta e algo mística, apela sobremaneira à interpretação do espectador. Tenha sido por "o caos reinar", pelo subtexto(?) ou simplesmente pela violência, enfrentei um longo e profundo sentimento de mal estar: o filme não só me obrigou a desviar o olhar (lembram-se de não ser habitualmente impressionável?) perante “aquela” auto-mutilação da protagonista, como também me infundiu de uma depressão que se instalou nos dias seguintes, durante os quais, para o bem e para o mal, o filme simplesmente não me saiu do pensamento.
Samuel Andrade
filmSPOT (https://filmspot.pt/) & À Pala de Walsh (http://www.apaladewalsh.com)
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