Foi senhor de um castelo que a cada episódio era alvo de uma invasão (“Takeshi’s Castle”, 1986-1990); um samurai louro e cego que lutava contra a injustiça (“The Blind Swordsman: Zatoichi”, 2003) e um gangster impiedoso num mundo de sucessivas traições (“Outrage”, 2010). O homem dos sete ofícios e mil talentos Takeshi Kitano deve ter encarado “Kikujiro” com naturalidade. Escreveu, realizou e encarnou o personagem (adulto) principal e apresentou, em simultâneo, mais uma personagem diferenciada e no entanto reconhecível para os que conhecem o seu trabalho e que por ele o amam e detestam em igual medida.
Em “Kikujiro” avizinha-se um Verão aborrecido para o pequeno Masao (Yusuke Sekiguchi), uma criança adorável mas socialmente desajeitada, habituada a longos períodos de solidão. O melhor e talvez único amigo, irá passar o Verão fora com os pais e Masao não tem com quem brincar. Também os treinos de basebol estão suspensos até ao início da escola. Ele vive apenas com a avó, mas nem esta lhe pode valer já que trabalha durante o dia, deixando-lhe as refeições preparadas para as horas em que não está em casa. Um dia encontra por acaso uma fotografia da mãe que não vê desde bebé. Temendo a reacção da avó e movido pela curiosidade decide partir sozinho à sua revelia para reencontrar e porventura voltar a viver com a mãe qual conto de fadas. A caminho da “fuga” planeada é interceptado por uma vizinha que se compadece dele e obriga o marido (Takeshi Kitano) a acompanhá-lo. Para o homem é uma oportunidade de passar uns dias sem a mulher mandona e aproveitar para gozar os prazeres da vida em paz. Levar à Masao a conhecer a mãe não faz de todo parte dos seus planos. Para a vizinha, desconfia-se, é apenas uma oportunidade de manter o marido na linha através da imposição de uma criança.
“Kikujiro” retrata as aventuras da criança e de um gangster através do Japão numa busca em torno do sonho inocente de Masao, mais do quea crescente relação de cumplicidade entre os dois. Filmado no estilo descontraído inconfundível de Kitano os acontecimentos sucedem-se com vagar desde a atitude negligente do gangster em cuidar de Masao às tentativas deste para sensibilizar o acompanhante que lhe foi imposto a ajudá-lo a cumprir aquela missão tão pessoal. “Kikujiro” é um trabalho estranho e desequilibrado. O que parece um feel-good movie torna-se afinal numa comédia negra quando se tocam em temas bem adultos como o jogo, vício, roubo, abandono ou a pedofilia. Se bem que não tenho a certeza de que o objectivo de fazer rir tivesse sido alcançado na totalidade. É antes um roadmovie com elementos de tragicomédia, nomeadamente durante uma sequência prolongada em que todos os adultos, ao dispor do pequeno Masao, desdobram-se em jogos de crianças para o animar. Como se a brincadeira o reparasse pelas experiências traumáticas porque passou durante a viagem. Se os jogos são giros, acho difícil quem quer que seja negá-lo, tenho todas as duvidas de que este momento devesse constar no filme, pelo menos de modo prolongado como se apresenta. Cinco minutos a menos não lhe fariam mal. A magia dos adultos que tentam fazer uma criança rir também acaba por ser manchada pelo facto de dois deles sofrerem de bullying por parte do gangster para se sujeitarem a tais comportamentos. Se este é um filme sobre o valor da amizade que pretende de algum modo indicar que se consegue encontrar alegria nos momentos mais negros, a verdade é que algumas atitudes do gangster são mesmo muito questionáveis em termos morais. Desde comportamentos desadequados para se ter à frente de uma criança, a usá-lo para a concretização de expedientes criminosos, vale tudo. Como apoiar alguém cuja moral inclui a despreocupação com o bem-estar de terceiros? A própria criança é influenciada de modo negativo pelo gangster a despeito de se tornar cada vez mais assertivo a cada novo desafio. Irrepreensível só mesmo Joe Hisaishi, o grande mestre das composições musicais para o cinema de animação mas não só que lhe confere uma aura refrescante ainda que “Kikujiro” seja tudo menos light. Se a composição de Hisaishi não vos comover são uns bastardos sem coração. Apesar de tudo, não seria má ideia Kitano passar mais tempo a ver comédias e filmes de animação. Esteve quase lá. Duas estrelas e meia.
Realização: Takeshi Kitano
Argumento: Takeshi Kitano
Takeshi Kitano como Kikujiro
Yusuke Sekiguchi como Masao
Kayoko Kishimoto como Mulher do Kikujiro
Próximo Filme: "Election" (Akumu Tantei, 2006)
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