domingo, 1 de outubro de 2017
Notas de um Festival de Cinema de Terror” – Parte três
Estava a chegar ao terceiro dia de festival e ainda não tinha visto “aquele” filme que me enchesse as medidas na totalidade. “The Endless” era certamente interessante mas a meio de um festival é problemático pensar que se calhar já tinha visto o que este teria de melhor para apresentar. Infelizmente o terceiro dia teria de chegar e terminar até atingir o objectivo desejado.
Dia 3
“Lake Bodom” (2016)
Apresentado como o primeiro filme de terror finlandês em muito tempo – de facto o cinema finlandês não é muito profícuo no que ao género diz respeito –, “Lake Bodom” baseia-se num caso ocorrido nos anos 60, na Finlândia, no qual três adolescentes foram encontrados mortos e um quarto foi encontrado inconsciente, vítimas de esfaqueamento múltiplo e de espancamento, que não foi resolvido (a despeito de fortes suspeitas da polícia) até aos dias de hoje. O cenário de um lago isolado e a idade das vítimas reuniram as condições ideais para se implantar no imaginário colectivo finlandês. Como o realizador Taneli Mustonen viria a explicar na sessão de Q&A que se seguiu a esta exibição, é vulgar os pais advertirem a sua prole, quando esta começa a manifestar interesse em fazer campismo selvagem, em ter cuidado para não acabar como a juventude de Bodom. Além deste contexto misterioso, mesmo à medida de um filme “baseado em factos verídicos”, soma-se-lhe uma intriga contemporânea.
Ida (Nelly Hirst-Gee) é uma adolescente pacata que está a recuperar de um trauma recente. Sem o seu conhecimento alguém fotografou-a nua e distribuiu depois as fotos através das redes sociais pela escola. A vergonha perante os colegas e a família fizeram a já quieta adolescente isolar-se ainda mais no seu canto. Apenas a insistência de Nora (Mimosa Willamo), a única que se recusou a julgá-la pelo que sucedeu, a faz aceitar ir acampar durante um fim-de-semana para o Lago Bodom. A acompanhá-las estão Elias (Mikael Gabriel), um colega com ar de bad boy que deseja impressionar as duas raparigas e Atte (Santeri Helinheimo Mäntylä), mentor da ideia da viagem que é fascinado pelo célebre crime. “Lake Bodom” transmite uma aura de regresso às origens do slasher, ainda que o argumento parta em direcções inesperadas e a contabilização de mortos seja muito baixa. O quarteto principal parece corresponder a pessoas reais, com os dilemas e problemas típicos da idade e escapam a duas reproduções a que estamos demasiado habituados. Têm uma personalidade unidimensional e essa costuma condizer com uma atitude insuportável ou estão demasiado sarcásticos e dentro da piada para seu próprio bom. Infelizmente, com 85 minutos de duração, as motivações destes personagens estão mal cozinhadas. Nem a excelente cinematografia de “Lake Bodom” consegue salvar um slasher que quer ser inteligente mas não lhe deu espaço para isso. Duas estrelas.
Dia 04
“Bliss” (2017)
Sempre existiu uma tradição forte do festival em inserir realizadores consagrados e mesmo novos talentos do cinema asiático na programação. Gosto tanto do cinema indie de terror anglo-saxónico como o próximo fã do género mas existe qualquer coisa de profundamente fascinante em verificar como o mesmo é interpretado numa cultura diametralmente oposta. “Bliss” é uma proposta de 100 minutos oriunda das Filipinas, do experiente Jerrold Tarog. A película centra-se em Jane Ciego (Iza Calzado) uma actriz de grande sucesso que parece ter a vida perfeita. Os seus trabalhos têm grande sucesso, uma legião de fãs, uma casa de sonho, uma mãe que a apoia e um marido perfeito para a fotografia. Um dia, sofre um grave acidente durante a rodagem de “Bliss”, o seu mais recente filme que a confina a uma cadeira de rodas e a necessitar de reabilitação. Presa em casa com Lilibeth (Adrienne Vergara), uma enfermeira que não aparenta ter o superior interesse dela em mente, Jane sente mais do que nunca o peso da fama e da pressão que a própria família impõe sobre ela. Ela tornou-se actriz por imposição de uma mãe mais interessada em retirar dividendos da carreira da filha do que em assegurar a sua felicidade e o marido Carlo (TJ Trinidad) só lhe dá atenção quando se trata de lhe pedir dinheiro. Está também assustada com a carreira. Ela aceitou todo o tipo de trabalhos para alcançar a fama e a fortuna mas o acidente pode representar o final da sua carreira e com ela os sonhos de consagração da crítica. Além disso, apercebe-se que os dias parecem repetir-se, com a variante de todos à sua volta se tornarem cada vez mais cruéis ou distantes. Em simultâneo, ela começa a ter dificuldade em destrinçar a vida real com a dos seus personagens. Obstáculo que dificulta a sua luta para reconquistar a autonomia física e psicológica. “Bliss” é uma homenagem assumida a filmes como “Groundhog Day” (1993), “Misery” (1990) e “Perfect Blue” (1997), com os elementos de melodrama comuns às películas filipinas, dando origem, se não, a uma obra completamente original, pelo menos um híbrido inteligente de cada um destes elementos. “Bliss” apenas sofre por um look talvez demasiado televisivo e pelo exagero de actores como Shamaine Buencamino (Jillian, a mãe de Jane) e Audie Gemora (Lexter, realizador de “Bliss”). Por outro lado, é uma delícia observar como “Bliss” é tão meta, não só devido às referências às obras já citadas como da possibilidade de estarmos a assistir a um filme dentro de filme, estando actores e realizador dentro da “piada”, pelos comportamentos “cliché”, em cena como do facto de a própria Iza Calzado ter iniciado uma carreira bastante jovem, procurando agora, ela própria, consagração através de papéis mais sérios. Três estrelas.
“Boys in the Trees” (2016)
Da Austrália chega a segunda estória sobre as dores de crescimento adolescente deste festival, sita nos anos 90. Onde “Super Dark Times” apresentou um tom depressivo ainda que com requintes irónicos, “Boys in the Trees” é mais linear e apresenta uma perspectiva bem mais optimista. Em comum têm as consequências devastadoras de uma acção no primeiro e inacção no segundo. Corey (Toby Wallace) terminou o secundário e pensa no passo seguinte que pode até envolver uma mudança de país, enquanto fotógrafo profissional. Ele costuma andar com um conjunto de skaters, indistinguíveis entre si, à excepção do intempestivo Jango (Justin Holborow) que quer ser e manter-se o líder da matilha para todo o sempre, mesmo que os anos passem por ele. Corey deixou de falar com Jonah (Gulliver McGrath) há alguns anos, para andar com Jango & companhia – os miúdos fixes –, que tratam este adolescente mais maduro e sensível de forma cruel.
Numa noite de Halloween as diferentes atitudes face à vida são obrigadas a confrontar-se e é forçada uma reflexão sobre o certo e o errado, o passado e o futuro. “Boys in the Trees” faz tudo certo em termos técnicos. É um espanto visual. Tem provavelmente uma das melhores cinematografias que o Motelx de 2017 viu. O que se encontra dentro deste embrulho bonito é que é bem mais sofrível. Jonah pede a Corey para se juntar a ele, uma última vez, dívida que lhe é devida pelo comportamento dos anos recentes, num jogo onde realidade e fantasia se misturam. Quantas vezes não se viu já o mundo místico a tomar conta do real, em tempo de Halloween? Mais do que isso, é um argumento inconsistente que expõe as fraquezas de “Boys in the Trees” onde os diálogos ora gritam pretensiosismo ora demonstram desconhecimento de como os adolescentes comunicam. O próprio marketing transmite mensagens mistas sobre o foco do filme: ora tenta apelar à nostalgia dos anos 90, ora pretende cativar o público jovem adulto com a perspectiva de romance que esteve tão em voga no final da primeira década de 2000. “Boys in the Trees” sofre ainda do mal da sobre-exposição. Depois de esgotar todas as direcções possíveis, o argumento detém-se ainda a explicar o que sucedeu até àquele ponto, através do recurso a analepses. Por fim, “Boys in the Trees” está mascarado de fantasia dramática com tons de terror mas é só uma fantasia dramática. Ambiciona passar a mensagem de que tudo está bem quando acaba bem, de que todos os erros do passado serão perdoados e que a adolescência é apenas a parte mais difícil do crescimento. Trai talvez por isso a lição que pretendia demonstrar de início. As personagens podem aprender algo sobre si próprias, ter auto-consciência dos seus comportamentos mas não há qualquer certeza de que isso provoque uma mudança nos seus comportamentos futuros. São precisas quase duas horas para chegar a esta conclusão. Certo. Duas estrelas e meia.
Publicado por
Rita Santos
à(s)
21:54
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