Existem emoções com as quais o ser humano não consegue lidar da melhor forma. Desconcerto, angustia e inquietação, certamente não se enquadrarão nos adjectivos de um filme favorito. “Let the right one in” comete a proeza de gerar estas emoções nos instantes iniciais. Oskar (Kare Hedebrant), um rapaz pálido como a neve que o rodeia, ataca uma árvore com uma faca de mato. “Guicha porco! Guincha” e procede a cortar a árvore. Logo ali, uma recoleção desconfortável, a de um “Deliverance” (1972) onde um Ned Beatty é violentado e humilhando – “guicha como um porco”, diz o torturador. Prosseguimos a assistir à vida atormentada de Oskar, a vítima favorita dos rufias da escola, que utiliza todas as desculpas para sair mais tarde das aulas e não se cruzar com os atacantes. Nova reminiscência: “The Lord of Flies” (1990), onde Conny (Patrik Rydmark) um líder natural talhado para o bestial, se possuísse mais poder do que aquele que efetivamente tem, só podemos imaginar o que faria do sensível Oskar. O rapaz, quase albino, não tem força para se defender, nem sequer contar aos pais divorciados o que se passa. Todos são indiferentes ou ignorantes do que se passa e a momentos, parece mesmo que nem querem saber. Ele queda-se por manejar uma faca, fantasiando sobre a morte do seu agressor. Assustador.
Entra pois, Eli (Lina Leandersson) uma nova vizinha misteriosa da idade de Oskar, que se muda para o apartamento ao lado dele e da mãe, com o pai Hakan (Per Ragnar). Ela apenas aparece no pátio de noite e diz-lhe que não podem ser amigos mas não abdica da sua companhia. Ela tem um cheiro “esquisito” e veste roupas frescas nas frias noites suecas. À partida, parece tão alheada de tudo quanto Oskar. É a amiga perfeita. É a única que tem. Hakan, por sua vez, é um velho estranho, que prefere uma vida solitária, enquanto fareja o próximo alvo para Eli. É que Eli, qual lobo sob pele de cordeiro, é na verdade uma vampira e tem de ser alimentada. Hakan é um serial killer, a mando de Eli? Ou por amor? Dizem-nos vagas insinuações e uma linha de diálogo dele, que alimenta algo mais por Eli do que amor paterno. Um pedófilo, um assassino, um servo, qual Renfield que serve o seu mestre Drácula. Mas nenhuma das personagens é na verdade “normal”, sugere-se que os pais de Oskar serão simpáticos por necessidade. Fizeram-no, mais vale criá-lo. Os vizinhos do bloco de apartamentos dividem-se entre o álcool e fobias de uma sociedade “evoluída”. Os professores de Oskar, nada mais são do que robots. Eles fazem o que têm que fazer por que é assim que as coisas são e não por que exista ali, algum traço de altruísmo. Com personagens assim, como não simpatizar com Oskar, mesmo quando ele demonstra um instinto homicida latente ou se encontra, (de modo perturbador entenda-se), inclinado a aceitar o vampirismo de Eli, tendo a compreensão de tudo o que isso implica. E Eli é uma vampira à maneira antiga, à de Bram Stoker. Talvez sem o caixão mas não é um ser totalmente destituído de razão e que brilha. Traz ainda uma nova visão do que significa ser vampiro, tanto na ficção como na vida real. Entenda-se o vampiro ficcional de John Ajvide Lindqvist, como uma criatura de enorme vulnerabilidade. Longe da invencibilidade que os vampiros de filmes mais recentes nos fizeram pensar. De facto, se reflectirmos bem, quão poderoso é um ser incapaz de suportar os raios de sol e que sobrevive de sangue humano? E mais, um predador do acaso, pois que, para entrar no covil da presa, tem de ser convidado. Já em termos clínicos, o vampiro, de Lindqvist é retratado de modo aproximado à realidade. Sob uma capa de vulnerabilidade, o vampiro consegue aproximar-se da sua “vítima” e fazê-la enamorar-se de tal modo que esta se torna sua protectora e dá tudo de si, dobra a sua vontade e abdica de uma vida própria. Tudo por ele. Incluindo matar.
Hakan é o retrato daquilo em que Oskar se tornará se seguir Eli. Um velho solitário, dominado, apaixonado e ao mesmo tempo amedrontado pelo mesmo ser que jurou proteger. Pese-se tudo isto, apesar da força inicial que Eli lhe incute para se proteger. A satisfação da afirmação de Oskar perante uns vilões, é rapidamente ultrapassada, pela ideia desconfortável de que ele poderá muito bem ser um psicopata em potência. Ele pode deixar de ser bem depressa um adolescente “normal” ao deixar-se ir atrás de uma menina, que lhe dá uma atenção que pode não ser tão desinteressada quanto isso. “Let the right one in”, trata-se então de percepção. Quando se está só e a apatia reina ao redor, pode não se ter a aptidão para compreender em que se deve acreditar ou como proceder. Está-se vulnerável e transmitem-se energias que podem convidar alguém que não deveria, a entrar nessa vida. Numa palavra: perturbador. Em última análise: fantástico. Quatro estrelas e meia.
Realização: Thomas Alfredson
Argumento: John Ajvide LindqvistKare Hedebrant como Oskar
Lina Leandersson como Eli
Per Ragnar como Hakan
Patrick Rydmark como Conny
Próximo Filme: "The Chaser" (Chugyeogja, 2008)
Adorei este filme, a prova de que ainda se pode abordar o mito do vampiro com uma nova visão.
ResponderEliminarE o Hakan de pedófilo pode não ter nada, pois como dizes pode acontecer ao Oskar o mesmo. Quem sabe se Hakan não a seguiu desde miúdo também? E ela? ama Oskar? ou é algo que vem mais da necessidade de ter alguém que cuide dela? Assombroso e apaixonante, sem dúvida :)
Já agora, vampiros à moda antiga, à Bram Stoker, sim e não :P
Atente-se que o Dracula de Bram Stoker não era certamente invencível, longe disso, mas não morria com a luz do Sol. Apenas entrava num transe de sono. E não me recordo, mas acho que também não precisava de convites para entrar :)
bjs
Discordo em alguns aspectos. Se a Oskar acontecer o mesmo, para todos os efeitos tornar-se-á um pedófilo. É um adulto e uma criança. Tal como era Lestat e Cláudia. Agora, quanto aos vampiros à moda antiga, não me referia à forma. Já não vejo o Drácula há muitos anos, mas lembro-me de um Drácula que sugava energia, que tecia um encanto sobre quem desejava. Isto é o verdadeiro vampirismo. Pois, as vítimas eram tomadas por ele e dobradas à sua vontade, ao mesmo tempo que definhavam, veja-se o Renfield. Eli, só tem aspecto de menina. Que de resto, não tem nada.
ResponderEliminarNão estava a afirmar nada em relação ao filme, nem eu sei que caminho optar. A questão da pedofilia separei-a porque é diferente ser um adulto que gosta de crianças e de ser alguém como o Oskar que se apaixona por uma, enquanto ele também criança. O amor por essa pessoa, personalidade mantém-se enquanto ele envelhece, porque ela também envelhece, também amadurece, ela não é uma criança, apenas no físico. Então aí não vejo mesmo os traços de pedofilia.
ResponderEliminarEm relação a ela ser mais velha é mais uma razão que aponta para ela dificilmente se apaixonar por uma criança e por isso mesmo o mais certo é usá-la. Seria claro mais bonito se assim não fosse. Mas sobre isso cada um tira as respectivas conclusões. houve momentos em que ela me faz acreditar nisto, aliás eu saí do cinema a acreditar nisto, depois é que vem a racionalização :P
Quanto ao vampiro eu percebi essas inclusões, mas como a seguir mencionaste as fraquezas, respondi que "sim e não". Porque por causa do twilight já ouvi muita coisa errada sobre vampiros, que na sua génese até eram bastante horrendos e longe dos seres sensuais que eventualmente se tornaram.
adoro o blog e tudo que você escreve.
ResponderEliminarnunca descontinue seu blog, nunca!!! (esta no meu 'favoritos')
beijos do Brasil!
Muito obrigada Chris!
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