segunda-feira, 8 de junho de 2020

Suores Frios - "Entre a cortina e o WC" - por Pedro Afonso


Quando me foi pedido para escrever sobre a cena/sequência, ou até filme inteiro, que me marcou e modelou a minha relação com o género de terror, eu soube imediatamente sobre que situação iria falar. Isso, só por si, demonstra como aquela experiência foi marcante para mim, mesmo que passem anos sem que me recorde dela, ou consiga nomear alguns outros filmes que foram muito mais marcantes e até modeladores da minha cinéfilia pelo género. Mas, para começar, é preciso contextuar a experiência.

Nasci e cresci em Angra do Heroísmo, e o meu pai dirigia o cinema da Fanfarra Operária Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Desde muito cedo, sendo filho de um cinéfilo e tendo acesso a um cinema de borla, frequentava-o, principalmente nas matinés duplas de domingo à tarde. Era um cinema à antiga, com plateia e balcão, uma sala enorme com 500 e muitos lugares, fosso de orquestra e um pé-direito enorme. As cadeiras eram de madeira, com uma parte almofadada no assento e nas costas, revestidas a napa bordeaux. O chão da plateia era em madeira, sendo que o do balcão era em alcatifa, revestido os degraus que o compunham. Tinha um foyer no rés-do-chão, em L. No canto esquerdo, a porta do escritório do meu pai, depois uma vitrine onde se expunham cartazes de filmes a estrear. Depois haviam umas portas em vidro que davam acesso à plateia e, no topo direito o balcão do bar, ao lado da escadaria que dava acesso ao piso superior. Lá em cima, um enorme foyer e, no canto superior esquerdo, 3 ou 4 degraus e mais umas portas de vidro que davam acesso directo ao balcão.

Depois das portas de vidro do rés-do-chão havia um átrio. Do lado esquerdo, a porta que dava acesso à cabine de projecção. Do lado direito, duas portas, uma para o WC feminino e outra (a da direita) para o masculino. Em frente, uma cortina espessa, pesada e bordeaux que separava o átrio da plateia. Quando estava um filme em exibição, ambas as portas de vidro, no piso inferior e superior, eram fechadas, estando abertas o resto do tempo.

O primeiro filme daquela sessão dupla, que só vale a pena mencionar para efeitos de localização temporal, era “Matilda - O Grande Acontecimento”, de 1978. O filme estreou em Portugal em Setembro de 1979, e como os filmes demoravam alguns meses a serem exibidos em Angra, aquela sessão deve ter acontecido na primeira metade de 1980, tinha eu 6 anos. Deste filme, a única coisa que me lembro é que tinha um canguru que lutava boxe com humanos. Foi um filme banal, quase de certeza, mas divertido para um puto que adorava ir ao cinema e que gostava de todos os filmes que via (até desenvolver consciência crítica).

O filme que me proporcionou a experiência que quero contar, foi o segundo da tarde. Não me lembro onde comecei a vê-lo, mas, naquela altura e tendo eu tenra idade, o meu pai punha-me sempre no lugar D19 do balcão, uma coxia reservada sempre para o chefe da polícia, que curiosamente nunca ia ao cinema (pelo menos às matinés de domingo).

Do filme em questão, lembrava-me apenas do início. Era um casal a namorar e a falar de estrelas cadentes, quando cai um meteoro não muito longe.  Um velhote aproximava-se, tocava-lhe com um pau e sai uma gosma que lhe sobe pelo braço. O casal encontra-o e leva-o a um médico. Soube, uns anos mais tarde e já depois de ver o seu remake de 1988, que se tratava de “The Blob” de 1958, filme de estreia como protagonista de Steve McQueen, e que revi há poucos anos, através do “My Two Thousand Movies” do Francisco Rocha. Quem já o viu, ou ao seu remake, sabe que aquela gosma vai aumentando e arrastando-se pela pequena cidade, engolindo tudo o que encontra à frente.



Não sei a que altura do filme eu não suportei vê-lo. Sei que não consegui sequer ficar na sala, uma vez que o som dos gritos e da música me provocavam um terror enorme. A dada altura, estava no átrio da plateia, escondido atrás da pesada cortina. Ia espreitando o filme quando a acção estava mais ‘calma’, mas correndo para o WC masculino quando se tornava insuportável. Sei que existia também a vergonha de ser apanhado, com medo de um filme, e a casa de banho era uma boa desculpa. Passei a sessão assim, um olho no filme, outro na porta da cabine, para não ser apanhado, e entradas na casa de banho sempre que o som se tornava mais agressivo ou ouvia algum barulho vindo da cabine e estranho à projecção. Lembro-me da ansiedade que senti com tudo isso, o coração acelerado, mas sempre atraído para o que se passava no ecrã, atrás da cortina. No final, quando a cortina se abriu um pouco e pessoas começaram a sair, misturei-me na multidão e saí para o foyer, triunfante por ter resistido e escapado a uma humilhação, mas sobretudo aliviado pelo fim do filme. Virei à direita, entrei no escritório do meu pai e devo ter respondido afirmativamente à pergunta que me fazia sempre: “Gostaste?”

Sei que isto foi um momento definidor para mim por várias razões. É um retrato de uma época interessante, em que se faziam sessões duplas, com um filme com um conceito infantil e outro mais adulto, para maiores de 6 anos (só havia 3 classificações na altura: 6, 13 e 18), e em que tenho as mais gratas e saudosas memórias de tanta porcaria que adorei ver. Mas aquilo que senti naquela sessão preparou-me para futuras sessões com filmes bem mais ‘pesados’ (“An American Werewolf In London” e “John Carpenter’s The Thing” foram dois filmes a que resisti estoicamente poucos anos depois, em sessões noturnas da RTP Açores, quando ficava a dormir em casa dos meus avós). O medo, esse ainda existia, melhor ou pior controlado, mas a atração, o encantamento e a adrenalina dessas sessões viciaram-me para o género.

(Re)vi “The Blob” há poucos anos, e, agora que o medo não existe, pude apreciar o quão insípido o filme é. Os efeitos especiais são fracos e datados, mas a narrativa é eficaz. Quando o vi em 1980 já conhecia o McQueen, “A Torre do Inferno” passava frequentemente nas matinés da Fanfarra (e o meu pai tinha um poster do filme no escritório, que eu passava horas a admirar), mas não tinha qualquer memória dele no filme (o que confirma o quão pouco vi dele). Mas, mais do que analisar o filme friamente, vieram-me memórias, sentimentos e emoções de uma época feliz e formadora, que me deixou marcas eternas.

Pedro Afonso
Blog Laxante Cultural http://www.laxantecultural.com/

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