segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Suores Frios "Por entre Dois Dedos num assento de Veludo - por Tomás Agostinho

 


É curioso pensar que o carácter natural de um filme tem muito pouco a ver com a nossa relação de tensão com o mesmo. Lembro-me ainda antes de pensar em redigir este texto que as imagens que mais me assolam, que induzem medo não são necessariamente aquelas cuja natureza intrínseca o parece exigir, vulgo filme de terror. Associar um género a uma sensação, de certo modo tónica, não é atípico no cinema. As emoções básicas do ser humano encontram-se perfeitamente delineadas como respostas emocionais padrão enquadradas num determinado género – seria até estranho que assim não o fosse quando nos sentamos num determinado filme. Comédia é para rir; drama é para chorar; terror é para amedrontar. Porém é igualmente sabido que o binómio género/emoção enquanto carácter meramente dual e exclusivo é pouco expressivo. Mais interessante é um filme, à parte da sua sensação essencial, conter uma confluência de outras. É nesta fusão que se abre um espaço para as leituras não tónicas. Estas interpretações emocionais são afectadas pelo contexto do tempo e do espaço de cada pessoa que vê o filme. As obras não são apenas produtos do seu tempo; são igualmente frutos da nossa relação com as mesmas. 

Exemplo claro disto são os filmes de terror de outra época que semeavam o medo junto dos seus espectadores incautos e que hoje se oferecem mais como memórias e registos, cápsulas do tempo de técnicas narrativas e estilísticas que despoletavam essas reações. Uma outra instância destas leituras são os filmes que vincaram a nossa infância. Não falamos apenas de um elemento nostálgico que adorna as películas em visualizações futuras, mas sim de uma verdadeira memória fantasma de uma reação que não se desvincula do objecto. Tomo como exemplo pessoal e enquadrado na temática deste espaço editorial, Harry Potter and the Chamber of Secrets (2002). 

Naquela sessão da tarde, ainda no antigo cinema das Amoreiras, via o filme com a minha mãe, onde tive que lhe pedir – entre lágrimas e um eminente ataque de ansiedade – que me levasse dali para fora, voltando – decidido de o terminar e vencer o medo – ao filme após o intervalo (será que houve intervalo? – os detalhes escapam-me). Em causa, tantos anos depois, e de interesse para este texto não está apenas o carácter das cenas que me levaram a tal reação. Não é difícil entender que para uma criança de nove anos o filme contém o necessário para gerar tal resposta neuronal. Na análise deste fenómeno o mais curioso talvez seja a memória que ficou do mesmo. Tendo voltado à sala depois do intervalo, numa (semi) vã tentativa de controlar a ansiedade – digo vã, na medida em que se revelou uma tentativa infrutífera, porque apesar de aguentar até ao final, fui frequentemente assombrado pelas imagens do mesmo durante os dias seguintes –, esse esforço (a luta pelo controlo) acabou por produzir um resultado inesperado: não me lembro da segunda metade do filme, dessa primeira visualização – dir-se-ia que fui o alvo perfeito de um dos encantamentos de amnésia do professor Lockhart. A minha memória do filme tomou para si a natureza da estrutura de todas as memórias: absolutamente lacunar. Seria a caricatura das minhas rememorações cinematográficas. Espantosamente, nos anos que se seguiram e antecederam uma segunda visualização – desta vez mais controlada e “completa” – fui criando imagens fantasmas de cenas, que sei agora não existirem, de modo a preencher as lacunas narrativas da minha memória. Porém, encontrava-me firmemente convicto que existiam. Lembro-me, inclusive, de comentar que teria visto uma versão diferente do filme. E vi, na minha cabeça, com o medo como projector das imagens. Mantém-se até hoje como uma das minhas experiências mais radicais no grande ecrã, evidenciando apenas o poder do medo na manipulação da percepção do passado e na falência do controlo do presente. 


Lisboa, Setembro (sob o medo da quarentena mundial) de 2020,
Tomás Agostinho

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